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Lavrenti Beria e a mudança dos ventos
| Foto: Reprodução Instagram

Durante muitos anos, o homem mais poderoso na União Soviética depois de Stálin foi Lavrenti Beria. Chefe da NKVD, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos (na prática, a Polícia Política), Beria foi um dos principais responsáveis pelo Grande Terror, o violento processo de perseguição que encarcerou, exilou e executou milhões de opositores entre 1934 e 1938 (somente em 1937 e 1938, estima-se que foram presas por motivos políticos cerca de 1,5 milhão de pessoas, das quais 680.000 foram executadas – uma média de mil execuções por dia).

Bajulador e mestre da intriga política, Beria desenvolveu um método muito eficaz de eliminar a oposição ao regime. Primeiro, ele acusava seus adversários por crimes imaginários. As denúncias eram cercadas de imensa publicidade. Nos julgamentos, os réus eram humilhados em público e coagidos a assinar confissões, antes de receberem a sentença. Aqueles que não eram imediatamente executados eram despachados para trabalhos forçados na Sibéria, onde a maioria morria de fome, frio ou doenças.

Não eram apenas políticos os perseguidos. Cerca de 2.000 escritores, intelectuais e artistas foram encarcerados no mesmo período, acusados de atividades antidemocráticas, digo, anti-soviéticas, e enviados para campos de trabalhos forçados; 1.500 morreram lá mesmo.  Mais difícil é quantificar as vítimas do laboratório de venenos idealizado e chefiado por Beria, responsável pelo assassinato clandestino de incontáveis opositores de Stalin.

Mas não foi só nos campos político e cultural que Stálin e Beria silenciaram e massacraram a oposição: após o final da Segunda Guerra, também o Exército Vermelho passou por um violento expurgo, com a remoção de toda a alta hierarquia e a prisão ou remoção de mais de 15.000 militares de média patente. Durante a guerra, foi Beria, aliás, quem comandou, em 1940, o Massacre de Katyn, uma carnificina de 22.000 civis poloneses. Coube a ele, por fim, a coordenação do programa nuclear soviético, a partir de 1943.

Beria com Svetlana, filha de Stálin, no colo. O ditador aparece ao fundo
Beria com Svetlana, filha de Stálin, no colo. O ditador aparece ao fundo

Imoral e com traços de psicopatia, Beria tinha a reputação de perseguir e violentar adolescentes, que ele sequestrava nas ruas de Moscou depois do expediente. Segundo Simon Sebag Montefiore, biógrafo de Stálin, a investigação dos estupros cometidos por Beria concluiu que ele era um “predador sexual que usou seu poder para se entregar à depravação obsessiva.” Após sua morte, tanto sua esposa Nina quanto seu filho Sergo também acusaram Beria de abuso sexual e estupro.

No livro Beria: O lugar-tenente de Stálin (Record, 1997), a historiadora Amy Knight confirma: Beria era rotineiramente visto pelas ruas de Moscou em seu carro blindado, indicando ao motorista as jovens que deveriam ser detidas e enviadas para a sua mansão. Lá, depois de um jantar regado a vinhos caros, Beria as levava para um quarto à prova de som e as violentava brutalmente.

Beria foi um todo-poderoso chefe do maior Estado policial que já existiu. Ele mandou prender, deportar, torturar ou fuzilar um número incontável de inocentes, incluindo desafetos pessoais e qualquer um que ele afirmasse representar uma ameaça à democracia, digo, ao comunismo soviético.

É de Beria a autoria da frase “Mostre-me o homem, e eu encontrarei seu crime”. Frase atualíssima em uma época na qual a Justiça parece primeiro escolher quem irá punir, para depois investigar e decidir por quê.

Pois bem, quando o ditador Stálin morreu, em março de 1953, o dinâmico Beria estava convencido de que seria seu sucessor. Todas as outras lideranças soviéticas que haviam sobrevivido aos expurgos – Molotov, Mikoian, Kruschev, Vorochilov, Kaganovich e Malenkov – pareciam temê-lo.

A trajetória trágica e infame de Beria deveria motivar uma reflexão profunda em todos aqueles que julgam que o poder é eterno. Não é – nem mesmo nas ditaduras

Três meses depois, tudo mudou, conforme relata a historiadora Sheila Fitzpatrick no livro Breve História da União Soviética (Todavia, 2023):

“Em junho de 1953, a liderança coletiva expulsou e posteriormente executou um dos seus – o chefe da polícia secreta Lavrenti Beria. Temiam que ele soubesse muitos de seus segredos pessoais; que estivesse usando kompromat (material comprometedor de arquivos policiais) de líderes das repúblicas e regiões para montar uma rede de apoio nacional; que estivesse incentivando o culto à sua própria personalidade; e que, na realidade, não se importava com o socialismo. Achavam também que ele era um exibicionista que não tinha respeito de verdade por seus colegas (Kaganovich, por exemplo, estava farto de ouvir de Beria: “Eu sou a autoridade, depois de Stálin eu dou as anistias, eu faço as denúncias, eu faço tudo”.

“A prisão de Beria, que o pegou totalmente de surpresa, foi orquestrada por Kruschev e marcou seu primeiro passo em direção à liderança pós-Stálin. A ação anti-Beria foi acompanhada por uma enorme campanha de difamação, que se concentrou particularmente (embora de modo atípico para a União Soviética) em sua vida sexual. Um tribunal militar fechado o condenou por traição e impôs a sentença de morte em dezembro de 1953. (...) Como chefe de segurança ele podia ser retratado como o gênio do mal de Stálin e culpado pelo terror.“

Detido e processado em dezembro de 1953 por "atividades criminosas contra o partido e o Estado", Lavrenti Beria foi condenado à pena máxima como traidor e rapidamente executado, no dia 23 do mesmo mês. Sem direito à defesa, foi submetido ao mesmo ritual imposto a milhões de pessoas por ordens suas.

Os ventos tinham mudado, e ele não tinha percebido. Segundo alguns biógrafos, diante do pelotão de fuzilamento Beria não demonstrou a mesma coragem de muitas de suas vítimas: ajoelhou-se, implorou por clemência e, deitado no chão, se desfez em lágrimas e gemidos. Nessa posição, foi alvejado na cabeça pelo general Pavel Batitsky.

A trajetória trágica e infame de Beria deveria servir de exemplo e motivar uma reflexão profunda em todos aqueles que acreditam que o poder é eterno. Não é – nem mesmo nas ditaduras, onde os algozes de hoje frequentemente se tornam as vítimas de amanhã. O sistema é bruto, companheiro, e descarta sem piedade qualquer um que se transforme em um problema, por maiores que tenham sido os serviços prestados.

A trajetória trágica e infame de Beria também deveria servir de exemplo e motivar uma reflexão profunda em todos aqueles que ignoram que os ventos mudam. E há sinais de que já começaram a mudar.

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