“Se a tolerância nasce da dúvida, que nos ensinem a duvidar de modelos e utopias”, escreve o sociólogo e cientista político Raymond Aron (1905-1983) em “O ópio dos intelectuais”. Lançado originalmente em 1955, em plena Guerra Fria e apenas dois anos após a morte de Stálin, o livro acaba de ganhar nova edição – e, com quase 70 anos, está mais atual do que nunca, guardadas as diferenças de contexto histórico, econômico e cultural.
Em uma época em que ser de esquerda na França era quase uma obrigação moral, Aron faz uma defesa apaixonada, corajosa e lúcida da razão, da democracia e da liberdade. Ele parte de uma investigação detalhada dos mitos e ilusões que desde sempre dominaram o pensamento esquerdista – e continuam dominando, no que importa, a sua versão contemporânea, o “progressismo”.
O autor concentra suas análises críticas em três eixos: as representações políticas da esquerda (os mitos da revolução e do proletariado), a visão marxista-leninista da História (com a promessa de justiça social em um mundo sem classes) e a traição dos intelectuais (que abrem mão de sua vocação para a crítica e da busca da verdade para se tornarem missionários de uma ideologia).
Evocando a célebre sentença de Marx em “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel”, já no título do livro Aron vai direto ao ponto: o projeto marxista se converteu em uma religião secular. Se, para Marx, a religião era o ópio do povo, para Raymond Aron o marxismo é o ópio dos intelectuais.
É uma igreja no pior sentido da palavra, pois abriga fanáticos e fundamentalistas e dissemina a idolatria e o autoritarismo, apesar de seu caráter materialista e supostamente científico. Uma igreja disposta a perseguir dissidentes e heréticos, em nome da defesa dos oprimidos. Uma igreja disposta, também, a usar sem qualquer cerimônia o poder coercitivo do Estado para calar seus críticos.
Comportamentos bizarros apontados por Aron continuam sendo adotados com a maior desfaçatez por intelectuais que se arvoram defensores da democracia, com base em um sentimento de superioridade de moral que justifica a censura, a mentira e uma mentalidade policialesca e intolerante.
A ideologia se tornou dogma, e o dogma religião. Aplicada à realidade contemporânea, a tese de Aron ajuda a entender o porquê da resistência dos convertidos a qualquer contestação: eles interditam o debate porque estão engajados em uma guerra religiosa, são movidos por uma questão de fé. Confundindo fatos e valores, seus laços não são com a realidade concreta, com a vida como ela é, mas com abstrações teóricas.
Aron classifica o comunismo como uma versão aviltada da mensagem cristã, por sacrificar a liberdade no altar do Estado onipotente
Por isso de nada adianta, por exemplo, tentar demonstrar por A mais B o recorrente e retumbante fracasso de todas as tentativas já feitas de substituir a economia de mercado por uma economia de comando.
O esquerdista-progressista é incapaz de tirar lições do passado, porque seu compromisso é com o futuro; não é com o mundo real, é com o mundo como ele gostaria que ele fosse. Ele rejeita e dispensa, assim, qualquer ensinamento dado pela experiência, já que, na sua cabeça, todos os fracassos do passado e do presente se justificarão em um futuro redentor.
Aron constata que os mesmos intelectuais que são impiedosos em suas análises das falhas do capitalismo demonstram uma tolerância infinita diante dos desastres econômicos e das atrocidades políticas cometidas por governos de viés marxista – e isso antes mesmo de o Congresso do Partido Comunista de 1956 expor a brutalidade do stalinismo.
Segundo Aron, o comunismo "sacrifica o que foi e continua sendo a alma da aventura definitiva: a liberdade de pesquisa, a liberdade de controvérsia, a liberdade de crítica e de voto do cidadão. Submete o desenvolvimento da economia a um planejamento rigoroso e a edificação socialista a uma ortodoxia de Estado".
Por tudo isso, Aron entendia que "o cristão nunca poderá ser um autêntico comunista, do mesmo modo que o comunista não pode crer em Deus, porque a religião secular animada por um ateísmo fundamental declara que o destino do homem cumpre-se todo inteiro nesta terra. O cristão progressista esconde de si mesmo essa incompatibilidade".
Raymond Aron fez análises certeiras de fenômenos sociais e políticos os mais diversos, enxergando mais longe e mais fundo que seus colegas que tinham a pretensão de encarnar a consciência da sociedade, com o seu contemporâneo Jean-Paul Sartre. Ele classifica o comunismo como "uma versão aviltada da mensagem cristã", por sacrificar a liberdade e a diferença no altar da ortodoxia do Estado onipotente.
Para Aron, “a realidade é sempre mais conservadora que as ideologias”. Quando a esquerda atinge a meta de conquistar o poder, aparece inevitavelmente outro objetivo urgente: a manutenção do poder. “O ideólogo dá lugar ao pragmático, a renovação se torna ortodoxia, e a libertação popular termina em dinastia hereditária”, afirma.
Quanto mais ameaçada a “causa” estiver, pior para a sociedade: “A revolução permanente, como estado de perpétua exceção, permite o exercício virtualmente ilimitado do poder, ao mesmo tempo em que justifica seu autoritarismo pelo ideal que pretende atingir em um futuro cada vez mais distante.” A verdadeira meta passa a ser a manutenção do poder.
O autor mostra, ainda, que o desenvolvimento do capitalismo contrariou diversas previsões marxistas – às quais muitos acadêmicos ainda se aferram. Mas o principal mérito de “O ópio dos intelectuais” é mesmo a exposição da relação de amor entre os intelectuais e a ideologia marxista, marcada pela busca inconsciente por uma religião.
Na conclusão do livro, Aron pergunta se é possível vislumbrar o “fim da era ideológica” e o triunfo do poder da razão. A resposta continua sendo não. Se voltasse à vida e visitasse o Brasil de hoje, Aron veria que a atração dos intelectuais por ideologias autoritárias continua firme e forte.
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