Em julho deste ano, completou oitenta anos a exposição mais famosa do regime nazista. Uma das mais tristes exposições de arte do século 20. Nela, estavam reunidas 600 obras que os nacional-socialistas consideravam “degeneradas”.
O conceito de “arte degenerada”, em alemão, “entartete Kunst”, surgiu para criticar as tendências do modernismo que iam contra tudo aquilo que o nazismo, um movimento reacionário por excelência, defendia. Tudo o que era contra o conceito tradicional de beleza ofendia.
Entre as obras consideradas degeneradas estavam produções de artistas que se tornaram símbolos do que de melhor o século 20 nos deu, como Picasso e Chagall (curiosamente, dia desses vivi para ler um outro reacionário defendendo Chagall como modelo de artista a ser seguido).
Oitenta anos depois, em terras tropicais, um movimento supostamente liberal decide fazer campanha contra obras de arte que considera exatamente… degeneradas. O Queermuseu, em Porto Alegre, com patrocínio do Santander Cultural e curadoria de Gaudêncio Fidélis, acabou sendo fechado por isso.
O MBL diz que não se trata de censura, já que eles não são governo, e que meramente defenderam um boicote. Vá lá. Mas que não poderiam tolerar uma exposição que, segundo eles, fazia a apologia de práticas sexuais como a pedofilia e a zoofilia, além de dessacralizar imagens cristãs.
Certamente não se trata de dizer que o MBL seja nazista: não é. Mas é evidente que a prática de negar o caráter de arte a tudo aquilo que se considera “desvio” de uma certa moralidade é típica de regimes autoritários e de gente que não entendeu ainda, mais de 130 anos depois do impressionismo, o que é a arte moderna.
Os comunistas, maior alvo da turma de Kim Kataguiri, também tinham sua ideia de que a arte não devia tratar de certos assuntos. Em 1932, Stálin sentou-se com Gorki, que alias já tinha sido vítima do regime, e deu a linha do que deveria ser o realismo socialista.
Stálin e Hitler tinham muito em comum. O gosto pela tradição e o repúdio à sexualidade eram apenas dois exemplos. O horror pelo moderno não se restringia às artes. Por isso, em certo sentido, ambos são reacionários.
O MBL surgiu para combater a esquerda representada pelo petismo. E agora precisa ver ameaças à sociedade tradicional em todo lugar. Criou para si esse papel e só subsiste nele. Precisa ver um hippie, um comunista e um degenerado debaixo de cada cama, ou cessa de ter importância.
Agora, presta-se a este papel ridículo. A mostra do Santander contava com alguns dos mais importantes artistas da história do país e com alguns de seus melhores nomes na contemporaneidade. Certamente tinha muita coisa boa, como se vê nos registros que sobraram antes do caminhão da intolerância passar por cima de tudo.
As obras de que os “liberais” não gostaram eram de dois tipos. De um lado, falavam de sexualidade. Sim, havia uma cena de zoofilia. Sim, havia imagens de crianças com “criança viada” escrito em cima. E as pessoas podem não gostar. Faz parte.
O outro gênero criticado eram as obras que mostravam imagens cristãs em contextos dessacralizados. E, de novo, alguém pode não gostar. E isso é democrático.
Cem anos atrás, as vanguardas chocaram o mundo. Stravinsky montou um balé em que uma adolescente era morta para celebrar a chegada da primavera – e causou espanto na França. Picasso pintou prostitutas nuas. Buñuel e Dali mostraram um sujeito tendo o olhos fatiado por uma lâmina. Duchamp colocou um urinol no museu.
É triste chegarmos a 2017 tendo de dizer de novo as mesmas coisas. Que a liberdade do artista reflete a liberdade da sociedade. Que não deve haver restrições morais ao artístico. Que arte não deve ser ideologia. Que retratar não é o mesmo que fazer apologia. Que a missão do artista é a de apreender o mundo, e não fazê-lo de acordo com o que dita a necessidade política de alguém.
O MBL não é nazista. Também não é liberal. É apenas mais uma face do reacionarismo brasileiro que insiste em ver perigo em tudo que não se conformar a seus estreitos e imutáveis padrões.
Em 2097 voltamos à discussão.
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