A questão sobre a filósofa Simone de Beauvoir no Enem provocou um escândalo nacional na semana passada. Houve revolta por parte da bancada mais conservadora no Congresso, acusações de doutrinação por parte do MEC e, por incrível que pareça, pelo menos uma Câmara Municipal, em Campinas, aprovou uma moção de repúdio ao ministério da Educação.
Por estranho que pareça, o medo que o texto usado causa pode ser visto como uma prova de sua veracidade. Fosse falso o que a autora defende, não haveria qualquer motivo para que se acirrassem os ânimos, para que alguém se preocupasse com ela.
Afinal, o que diz o texto de Beauvoir? Basicamente, que nossa ideia do que é ser “mulher” tem muito de social, e não é totalmente biológica. Olha o texto aí de novo:
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.”
Os vereadores de Campinas, horrorizados, tentaram entender se isso queria dizer que “alguém é mulher de dia e homem de noite”. Não é mentira. Isso foi dito na Câmara. Então, para facilitar a interpretação do texto, vamos lá: troque-se “mulher” por “feminina”. Não fica exatamente a mesma coisa, mas talvez ajude.
O que Beauvoir estava dizendo é que ninguém nasce seguindo naturalmente os padrões sociais que se esperam de uma mulher. Ela é “mulher” num primeiro instante, pelos cromossomos, pela genitália. Só. Ser o que chamamos de “feminina” exige todo um treinamento (adestramento?). Das roupas rosas à leitura de Marie Claire. Da submissão à moda à submissão ao homem. Exige a submissão a um estereótipo.
Uma prova do que Beauvoir defende pode ser geográfica. Ser mulher no Brasil pode incluir (e até exigir) sensualidade, biquínis mínimos, corpo de revista. Fazer o mesmo na Arábia Saudita é ser diferente do que se espera de uma mulher lá. E pode levar a sérios problemas para quem não se adapta às questões e preconceitos sociais de lá.
Outra pode ser uma prova histórica: ser mulher na Roma Antiga, ou na Londres do século 18 é diferente do que é ser mulher hoje, digamos, nos Estados Unidos. Porque tudo tem a ver não apenas com cromossomos e genitália, mas também com expectativas e construções sociais. Dá para negar?
Mas a prova que os opositores da filósofa ofereceram com sua reação ao Enem é mais sutil, embora igualmente importante. Por que eles não querem que se divulgue uma teoria como essa? Os argumentos de quem entendeu minimamente o texto – esqueça os vereadores de Campinas – são de que isso pode influenciar os alunos.
Se os antifeministas estivessem tão certos de que nada muda o que é “ser mulher”, que as mulheres são o que são independente do resto, não precisariam se preocupar tanto com Beauvoir. Ela seria inócua. Seu texto seria um mero absurdo, ou algo que não causaria transformação alguma.
Eles se preocupam, porém, porque sabem que tomar consciência do aspecto social da construção do feminino é poder libertar-se dele. É poder escolher entre aceitar o estereótipo, a submissão ao que se espera socialmente de alguém, ou confrontar isso. O texto é “perigoso” porque faz perceber que há opções. Que as mulheres não precisam ser exatamente como são hoje.
Que, afinal de contas, ninguém nasce “mulher”. Torna-se.
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