Parece que esse caso do tal Instituto Royal, pelo qual não boto a mão no fogo, diga-se de antemão, está pelo menos fazendo com que surjam algumas vozes contestando o que me parece ser um certo fanatismo da parte dos defensores dos animais. Esse é um assunto delicado, e quando a gente fala tende a apanhar, independente de que lado esteja.
Eu me considero um defensor dos direitos dos animais. Gosto de bichinhos. Tenho dois cachorros tirados da rua. Nunca maltratei nem um ratinho que seja. E, no entanto, me preocupo imensamente com essa onda que surgiu recentemente. Antes do resto, repito, antes que me acusem de algo que não é verdadeiro. Acho digno e mesmo necessário defender os animais. Não é esse o ponto.
O que eu considero um problema é que essa defesa dos animais não faz parte de um pacote de preocupação com “o outro” em geral. Me parece que essa seria uma atitude positiva. Não se ver como centro do mundo, perceber que há outros que sofrem, atendê-los na necessidade. Ver, por exemplo, que nós humanos temos deveres uns com os outros e enxergar a proteção animal como uma extensão disso.
Essa postura, acho, traria benefícios a todos. Mas envolveria ver que primeiro temos deveres com os que são de nossa própria espécie. Que os humanos têm sim algum grau de prioridade. Por serem racionais. Por poderem antecipar seu sofrimento. Por terem memória do que sofreram. Por terem consciência. Por serem eles que podem aderir a um sistema moral e, inclusive, se bem tratados, tratarem também aos outros e aos animais.
Mas não é isso que se vê. O que se vê é um apego pelos animais que parece surgir justamente do contrário, de um desencanto com o humano. Não é à toa que se ouvem frequentemente frases que indicam que os animais merecem mais. Que nem todo humano merece algo, mas que todo cachorro merece essa mesma coisa (seja atenção, carinho ou algo do gênero).
Isso parece vir da pressuposição de que os animais são mais bondosos, menos mesquinhos do que os humanos. O sentimento é antigo e já foi alvo de uma ironia de Mark Twain. “Recolha um cão de rua, dê-lhe de comer e ele não morderá: eis a diferença fundamental entre o cão e o Homem”.
É preciso, porém, recolocar as coisas no seu lugar. Um cachorro – assim como qualquer outro animal – não age como age por motivos morais. Animais são puro instinto. Instinto de sobrevivência, de reprodução. Não são pura bondade. Não existe o cachorro altruísta. Eles gostam de nós porque veem nisso a oportunidade de ganhar algo, nada mais. Quem tem sentimentos morais é o ser humano. Cachorros gostam do dono? Claro. Mas, sejamos claros, comerão seu cadáver sem dó se for o caso.
É preciso não ter sentimentalismos exagerados. Cachorros e gatos são cachorros e gatos. Não agem com ética. Agem com hormônios. Quem tem sentimento moral é o homem. O humano. Não há termo de comparação possível aqui. Se alguém é capaz de ação ética propriamente falando, somos nós. Ok, somos capazes de fazer o mal perlo mal também, é verdade.
E mais do que isso. Conviver com humanos pode ser penoso. Homens e mulheres, ao contrário de animais, têm opiniões. Têm projetos de vida. Não basta lhes dar água e comida. Eles querem mais. Têm desejos e muitas vezes esses desejos vão contra a vontade do outro. É preciso negociar. É preciso tolerância. É preciso respeito. E há quem canse de ter de respeitar os outros – é tão difícil.
Rebatendo Mark Twain, seria possível dizer: “A um homem não basta lhe dar água e casa para que ele seja feliz. Eis o que o separa de um cão”. Ou: “A lealdade de um homem não se compra com comida”. Sim, queremos mais. Sim, somos mais exigentes. E a convivência a longo prazo, em uns, se transforma em desejo de aprender a conviver melhor. Em outros, causa erisipela. E podem ver nos animais uma maneira mais simples de ter outros por perto sem ter de abrir mão de nada do que são.
A psicologia pode não ser essa, mas é o que parece. Gritam os defensores dos animais a pulmões plenos que os homens não prestam. Mas somos nós os únicos a ter moral. E os únicos a poder salvar o planeta.
E aí surgem outros problemas. O problema da prioridade, por exemplo. Certo, é preciso respeitar os animais. Mas os humanos não merecem uma preferência? Nem vou usar exemplos com crianças, para não ser sentimental demais. Mas se a vida de uma pessoa depender de algum tipo de sofrimento animal, estaremos impedidos de fazer isso?
E nos casos de bens escassos, como o orçamento público: até qual porcentagem é justo com a humanidade, especialmente com os que mais precisam, usar recursos desse tipo para animais? Só na medida em que isso ajuda os humanos indiretamente? E se, como no caso do projeto do SUS Animal, isso tirar verbas da saúde pública?
Pensando por redução ao absurdo; e se um dia houvesse uma praga, uma invasão, poderíamos reagir? E ainda no absurdo: e até que nível de complexidade animal devemos essa lealdade? Aos que causam danos aos humanos? Aos que causam infecções? No limite, não podemos nos vacinar?
Digo tudo isso com um objetivo claro: é irracional não cuidar bem dos animais. Mas é igualmente irracional colocar neles a prioridade, retirá-la dos humanos. Quem faz isso não gosta dos outros nem de si. Está relegando sua humanidade a segundo plano. E isso, sinceramente, é inaceitável.