No seu livro “O discurso dos sons” (Musik als Klangrede), que foi muito bem traduzido para o português pelo cravista Marcelo Fagerlande e publicado pela editora Zahar, o grande maestro e instrumentista alemão Nikolaus Harnoncourt nos chama a atenção para a função secundária que a arte musical séria ocupa nos dias de hoje. Uma frase de seu livro: “Hoje a música se tornou apenas um simples ornamento, que permite preencher noites vazias ao se ir a um concerto ou a uma ópera, organizar festividades públicas ou, em sua casa, através de aparelhos de som, espantar ou mobiliar o silencio criado pela solidão”. Diz ele que há um paradoxo no fato de ouvirmos muito mais música hoje do que antes, mas que esta música não é mais do que um enfeite. Estes pensamentos do maestro alemão não atingem apenas uma parte do mundo, mas sim a totalidade da nossa civilização ocidental. O que poderia fazer com que a música em particular e a arte em geral adquirissem um significado mais marcante em nossas vidas? Um bom início é reconhecermos como a nossa existência está se tornando cada vez mais materialista, como não damos importância à vida, e como prezamos pouco fazer a arte e a cultura se tornarem um instrumento de transformação. Há mais algumas frases de Harnoncourt que devo citar: “Não são mais os valores já respeitados nos séculos passados que nos parecem importantes. Eles (os homens do passado) consagravam todas as suas forças, seus sofrimentos e suas paixões para construir templos e catedrais, em lugar de lhes dedicar este tempo a máquinas e a seu conforto. O homem de nossos tempos dá mais valor a um automóvel ou a um avião do que a um violino, mais valor ao esquema de um aparelho eletrônico do que a uma sinfonia… sem refletir rejeitamos a intensidade da vida pela sedução vazia do conforto.” Estas sábias frases de Harnoncourt me soam ainda mais contundentes quando percebo que muitos músicos transformam sua carreira numa irrefreável corrida à fortuna financeira e a uma vaidade sem limites. Não estaríamos corrompendo a verdadeira função da música e da arte?
Ao citar o quanto admiramos máquinas fico impressionado com a quantidade de comerciais de automóveis na televisão brasileira. Para que serve um automóvel? Para nos levar de um lado para outro. Apenas isso. Valoriza-lo da maneira como se vê é dar uma preponderância a algo que não merece e é tirarmos espaço do que realmente importa. Não quero impingir a ninguém os meus valores, mas creio que falar um pouco deles não faz mal algum. Uma obra de arte seja ela uma Pintura, uma Sinfonia ou um Romance podem servir para múltiplas coisas, algo que se aproxima daquilo que pode nos aproximar de uma “iluminação”. Não há comparação com algo que estará “fora de moda” em alguns anos, que poderá ser destruído num acidente ou roubado. Nossa imprensa, e nossa vida em geral é um retrato de nós mesmos. Nós permitimos, e refletimos pouco a respeito, que atletas com nível de inteligência bem baixo ocupem enormes espaços de jornais e de televisões, que sejam supervalorizados e muitíssimo bem pagos, em detrimento a algo que seja realmente vital para nosso crescimento espiritual. Não poodemos ver isso com naturalidade.
Citando agora outro grande músico, o compositor russo Igor Stravinsky (1882-1971), numa de suas conversas com o maestro Robert Craft, ele fala do vazio que uma carreira musical pode ter se ela não leva a nenhum progresso espiritual. Suas palavras parecem expressar claramente o que eu penso: “Tenho uma fotografia na minha parede de Alban Berg e Anton Webern juntos”(compositores austríacos falecidos respectivamente em 1935 e 1945). (…) “Quando olho esta foto, não posso deixar de me lembrar de que, tão pouco tempo depois, ambos tiveram morte trágica e prematura, depois de anos de pobreza, abandono musical e finalmente banimento do meio musical de seu próprio país”. (…) “Comparo o destino destes homens que nada exigiram do mundo e que fizeram a música por meio da qual a primeira metade deste século (ele fala do século XX) será lembrada, e comparo com as “carreiras” de regentes, pianistas, violinistas – todas excrescências vãs. Então, essa fotografia de dois grandes músicos, dois espíritos puros, honestos seres humanos (“ehrliche Menschen” no original) me restitui o senso da justiça no mais profundo nível”. O meio musical está cheio do que Stravinsky chamou de “excrescências vãs”. O ponto de contato entre o que fala Nikolaus Harnoncourt e o que observou Stravinsky é que estamos desorientados, valorizamos inutilidades e estamos a todo o momento esquecendo que a arte pode transformar nossas vidas. Fico descrente vendo tanta coisa que julgo errada, e para mim supervalorizar um carro e dar espaço para as falas “troglodíticas” de um atleta pouco inteligente é tão indigno como tornar a arte um instrumento para auferir fortuna e fama. Comparo nosso mundo, e nosso meio, aos mercadores em meio ao templo. O que é mais sagrado acaba sendo desrespeitado. Temos que lutar contra isso!!!
Harnoncourt “ensina” Beethoven
Duas partes de um vídeo de Nikolaus Harnoncourt ensaiando. Decididamente ele é um homem de fé !!! Tem legendas em português.