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O concerto da Filarmônica da UFPR: 100 anos da Primeira Guerra

O maestro Marcio Steuernagel ensaiando a Filarmônica UFPR para o concerto (Foto: )
O maestro Marcio Steuernagel ensaiando a Filarmônica UFPR para o concerto

O maestro Marcio Steuernagel ensaiando a Filarmônica UFPR para o concerto

Na última sexta (dia 23) e sábado (24 de maio) a Orquestra Filarmônica da UFPR fez o concerto “Música em tempo de guerra – concerto memorial do centenário da Primeira Guerra Mundial”. A foto acima, de Jonathan Campos para a Gazeta do Povo, foi feita para ilustrar a reportagem de Rafael Costa, que saiu no jornal na última quinta-feira. Ali já tem uma ótima explicação do que seria o concerto. Eu fui assistir, e deixo aqui minhas impressões.

Foi um concerto “histórico”, em muitos sentidos do termo.

Em primeiro lugar pela concepção de todo o espetáculo. Um tema importantíssimo (que me parece está sendo pouco lembrado), definidor dos rumos da geopolítica mundial, e um marco de ruptura e do sepultamento daquele otimismo burguês e liberal que tinha marcado o fim do século XIX. A guerra de 1914-1919, ou também conhecida como Primeira Guerra Mundial (por mundial entende-se as principais potências europeias envolvidas em um mesmo conflito) marcou o fim da ilusão de que o mundo evoluía: como países de cultura tão desenvolvida, de luxo tão refinado, de sabedoria tão científica, eram capazes de mandar seus jovens para tamanha carnificina?

Não seria exagero dizer que o mundo artístico já vinha captando esta ruína, afinal, os primeiros anos do século XX foram de notável ruptura estética, e parte deste movimento foi captado pelo repertório do concerto, dentro dos limites possíveis. A primeira peça, The unanswered question, de Charels Ives, talvez seja um bom exemplo desta ruptura, ou deste momento de criação de instabilidades. Considera-se que tenha sido escrita em 1908, mas sofreu uma revisão significativa pelo compositor na década de 1930, e foi estreada apenas em 1946. Nas primeiras décadas do século, Ives tinha acabado de se formar em composição e viveu um longo período de reclusão sobre o qual pouco se sabe (escrevi sobre ele neste outro texto, num blog antigo).

A obra apresenta uma escrita bastante avançada para as cordas, que sustentam uma massa sonora meio informe, formada por notas longas, meio prenúncio de coisas que gente como Ligeti faria muito depois. Em meio a isso, o trompete insiste com uma “pergunta” que as cordas jamais respondem:

Trecho do trompete: a

Trecho do trompete: a “pergunta” que não recebe resposta

As outras peças do programa não eram tão incisivas testemunhas de uma ruptura estética como essa de Ives. Mas não foi só nesse sentido que o concerto foi histórico.

Foi histórico também pela ótima concepção performática. Cada vez mais fica evidente que concertos que têm apenas uma boa sequência de músicas são fadados à mesmice, mesmo numa cidade com pouca oportunidade de ouvir boa música de concerto como Curitiba.A concepção do programa, por Harry Crowl e Márcio Steuernagel resultou em um concerto multimídia, onde além da escolha de um tema pertinente e da ótima seleção das obras musicais, ainda tivemos projeção de fotos, filmes e cartas da época da guerra, formando uma experiência completa.

Não apenas as fotos e cartas proporcionam uma boa “contextualização” das músicas. É muito mais do que isso. As projeções foram concebidas como interação estética com as obras musicais. Talvez isso isso tenha dado tão certo devido às referências de Harry Crowl e Márcio Steuernagel como compositores de vocação multimidiática – no sentido de que são compositores que gostam de compor sobre motivos literários, sobre temas cinematográficos, sobre paisagens, sobre pinturas, e outros diversos estímulos não musicais.

Quem já trabalha criativamente com impulsos visuais e literários como disparadores de ideias musicais, se mostrou também muito hábil em selecionar as projeções de modo a complementar a experiência musical propriamente dita, se é que realmente algum dia já foi possível uma experiência musical pura como a proposta por certo ideal iluminista de cultura. Ou seja, quero dizer, a maioria das vezes os concertos já são mesmo uma experiência multimídia, com toda a teatralidade das roupas e do gestual do maestro, dos solistas e dos músicos. Neste concerto esse aspecto perdeu relevância, dando lugar a uma concepção cênica mais global.

Por exemplo, na peça de Charles Ives, o espaço cênico do teatro foi explorado para enriquecer a experiência musical. O conjunto de madeiras, tratado pelo compositor como um ensamble separado do conjunto das cordas, aparece no fundo da plateia – e realmente os músicos só vão para os lugares designados no momento preciso de sua intervenção. No caso do trompete com sua insistente e irrespondível pergunta, isso fica ainda mais acentuado. Como seja sempre o mesmo trecho musical que o instrumento recita, ele faz isso com aparições em diversos lugares, com o trompetista locomovendo-se em partes do palco e da plateia. Assim, mais do que uma pergunta-tema musical, pode-se pensar em perguntar onde está o trompete, uma vez que a emissão sonora se desloca pelo espaço do teatro.

A experiência multimídia foi potencializada também pelo fato de o concerto não ter sido enunciado na forma de números musicais estanques. Não havia aplauso entre uma música e outra, porque a orquestra não dava nem tempo da gente respirar. Não que tenha havido um continuum indiferenciado entre as obras, porque a concepção do concerto privilegiou contrastes estilísticos entre as obras. Por exemplo, da obra de Ives passou-se a uma Dança Romena de Bártok, com um forte contraste entre as notas longas das cordas na primeira peça e o evidente caráter rítmico da segunda obra.

“Paradeira” nas cordas, na obra de Ives

A terceira peça foi a Pavane pour une infante défunte de Ravel, peça de grande lirismo e melodia comovente, que é matizada pelo início das projeções no telão, com fotos de feridos de guerra e de destroços.

Na sequência, uma peça chocante: a Paráfrase sobre os hinos das nações aliadas, de Glazunov, uma obra de evidente propaganda, glorificadora da vitória das nações consideradas “do lado certo” no conflito (cuja justificativa ideológica sempre consistiu em identificar grupos de nações postados em posições seguras entre o bem e o mal). Ou seja, a obra foi escrita com a intenção de corroborar as justificativas da guerra: venceremos porque somos os bons, ou o bem, combatendo os maus, ou o mal (Glazunov escreveu a peça em 1916, durante a invasão alemã da Rússia). Esse ufanismo é chocante se pensarmos que o Czar e o Kaiser estavam disputando a hegemonia imperial sobre os povos eslavos, e foi contrastado por um longo silêncio no concerto, onde foram projetadas imagens da época da guerra. Era como se os organizadores do concerto quisessem nos dar, depois das injeções musicais de patriotismo planejadas por Glazunov, um antídoto eficaz – “vejam, é a morte e a destruição, não há pátria que valha isso”.

E aí Harry Crowl e Márcio Steuernagel remetem ao grupo dos gigantes intelectuais que criaram, na mesma época da guerra, uma longa tradição de engajamento pacifista. Especialmente na França, se havia compositores que se alistavam e alimentavam com suas carnes o conflito (Ravel, Vaugham-Williams e Strauss, para ficar apenas nos que estavam no programa do concerto), diversos intelectuais importantes disseram aos quatro ventos que essa guerra não era dos trabalhadores, dos homens comuns – era uma guerra dos imperadores e dos empresários predadores, e seria uma burrice alimentá-la.

Os anos de intenso conflito armado, crise, fome, destruição, morticínio em massa, prisões arbitrárias, suspensão de direitos, que marcaram o período 1914-1945 terminaram por deixar evidente o quanto aquele tipo de ideologia de guerra era perigoso para a humanidade.

E nesse clima intelectual é que saímos do torpor provocado pelo filme mudo para entrarmos com Janácek em uma Dança Morávia. E depois seguimos pela Rakastava de Sibelius, uma bela peça, que emoldura as emoções das cartas trocadas entre um soldado e sua filha, seguida de The lark ascending de Vaugham-Williams com o solo de violino de Ricardo Molter – e a projeção das cartas trocadas entre um soldado e sua noiva.

E para finalizar, depois de tocar obras de compositores dos países “do bem”, vem uma obra do bad boy Richard Strauss. Que a obra mais contundente do concerto, por sua harmonia expressionista, seja de um compositor alemão – traz aquele brutal mal-estar que nos lembra o paradoxo de que a nação que deu Bach, Beethoven, Schubert, Brahms e os maiores clássicos da música seria a mesma que nos daria Hitler, os expurgos nacional-socialistas, as SS e os campos de concentração.

Ou seja, é preciso desconfiar de toda beleza musical, afinal, os acordes mais belos justificariam as maiores atrocidades em nome da civilização: aquela mesma civilização que precisava empilhar cadáveres para continuar tomando chá em louças finas e ouvindo quartetos de cordas.

Mas, sobretudo, esse concerto foi histórico por mostrar até onde pode ir um trabalho com músicos amadores. Márcio Steuernagel extraiu da orquestra o melhor sentido da palavra – músicos que tocam pelo amor à música, uma vez que a remuneração que recebem não é adequada ao esforço de trabalho exigido. Assim, a Filarmônica da UFPR cumpre brilhantemente a função de uma orquestra universitária: dar à vida musical da cidade aquele tom de pesquisa estética e inovação cultural que deve marcar toda a produção das universidades, ao mesmo tempo em que proporciona complemento da formação e experiência musical significativa para os jovens músicos que integram o conjunto.

Márcio Steuernagel está de parabéns pela continuidade do trabalho altamente relevante à frente do conjunto, assim como juntamente com Harry Crowl, merece destaque pela concepção do concerto. Foi certamente um momento histórico para quem assistiu.

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