Tempos atrás fiz um balanço aqui no blog dos lançamentos que trataram da história em torno do golpe de 1964, que fez 50 anos na virada de março para abril:
Entre os livros lançados, certamente um dos bons foi o do professor Marcos Napolitano, que fiz resenha aqui no blog:
O livro do Napolitano aproveitou o ensejo para fazer uma interessante avaliação histórica das origens do golpe, partindo para uma visão panorâmica do Regime Militar entre 1964 e 85, com destaque para a vida cultural, a repressão dos militares e a resistência dos intelectuais e da sociedade civil, entrando também nos delicados temas referentes à memória do Regime.
Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes fizeram o caminho para trás. Em seu livro, 1964 é o ponto de chegada. A história começa com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, acompanha as peripécias da rede da legalidade (que garantiu a posse do vice-presidente constitucional), as dificuldades para montar o gabinete parlamentarista, a instabilidade política do governo João Goulart, pressionado entre os radicalismos de direita e de esquerda.
A todo o momento os autores enfatizam o caráter aberto das decisões com que se deparavam os atores. Ressaltam o perigo das teleologias, ou do que uma professora minha chamava de “prever o passado” (a profª. Ana Maria Burmester, de cujas aulas no mestrado em história da UFPR sinto muita saudade). Destacam a tentação de considerar que os caminhos já estavam traçados. Em contraposição a isso, os autores procuram destacar as possibilidades que se abriam, as opções diversas, e uma especulação saudável sobre prováveis rumos caso as decisões fossem outras.
Mesmo com todo este cuidado metodológico, a gente termina a leitura do livro com uma sensação muito agonizante de que os caminhos escolhidos pelos agentes históricos fizeram do golpe uma coisa realmente inevitável.
Os radicalismos de direita e a cultura golpista enraizada na política brasileira foram fatores importantes. Mas eles estavam ali desde sempre – ninguém podia se surpreender com isso. A novidade talvez fosse o forte interesse dos EUA em apoiar um golpe contra Jango, por diversos fatores muito bem explicados no livro. Mas apesar de a ameaça militar norte-americana ter tido alguma influência no equilíbrio das forças internas, o livro demonstra que isso não foi um fator decisivo. Teria sido possível o governo João Goulart se sustentar, e o consenso em torno da via democrática tinha se demonstrado suficientemente forte desde o apoio de Lot à posse de Juscelino, e principalmente no episódio após a renúncia de Jânio.
A maioria da opinião pública, da imprensa, dos partidos e lideranças políticas, dos empresários e mesmo do comando militar tinham se mostrado favoráveis à legalidade e à constituição. E talvez a principal qualidade do livro seja contar, em riqueza de detalhes e cuidadosa pesquisa (artigos de imprensa e depoimentos, principalmente), como João Goulart deixou de ser o homem a ser defendido pelas forças democráticas e passou a ser percebido como uma ameaça à ordem constitucional.
Parece que a história caminhava mais rápido naqueles tempos, pois tudo se precipitou em meses. A renúncia de Jânio, a defesa de Jango como presidente constitucional, a articulação do parlamentarismo, a montagem do primeiro gabinete, o desmonte deste e a montagem de vários outros, as eleições de 62 e o crescimento vertiginoso do PTB (especialmente sua ala esquerda), o plebiscito do presidencialismo, a radicalização das ações da esquerda democrática (esqueçam o papo de ameaça de revolução armada realizada por uma esquerda marxista, isso não estava nem perto do horizonte) em comícios e greves, o golpe. Tudo nos 2 anos e meio entre agosto de 1961 e março de 1964.
Na magistral resenha que fez de outro dos livros saídos na onda dos 50 anos do golpe, Celso Barros levanta a hipótese (pouco investigada), de que a existência de chapas não casadas de presidente e vice teriam sido um fator de grande desestabilização. Ou seja, o fato de que as pessoas podiam votar no Jânio e num vice de outro partido (no caso Jango, que seria o vice do Marechal Lott). Aliás, tanto em 1955 quanto em 1960 Jango conseguiu o feito de, como vice, ter mais votos que o presidente eleito (JK na primeira vez).
Realmente Jânio Quadros contava com isso quando renunciou, esperando que houvesse um clamor para impedir a posse do vice, o que o faria voltar com amplos poderes, dissolvendo o Congresso. Setores militares realmente tentaram impedir a posse do vice, mas sem devolver a presidência a Jânio. O Congresso, por sua vez, aceitou rapidamente a renúncia do presidente, mas não aceitou que os militares controlassem o novo governo, e foi fundamental na garantia da posse do presidente constitucional.
Essa confusão toda de 1961 causou problemas sérios para a possibilidade de formar um governo estável, mas creio que Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes demonstram que as possibilidades eram múltiplas – a crise da renúncia de Jânio não levava imediatamente ao golpe de 1964, mas havia um amplo leque de possibilidades.
O fator que provavelmente foi mais decisivo não foi a confusão do voto separado para presidente e vice, mas a meu ver, ressalta da leitura do livro o fator terrivelmente desestabilizador que foi a inexistência de um candidato natural à sucessão de João Goulart em seu próprio partido. Neste caso, o impedimento da reeleição foi um fator negativo, pois Jango não poderia concorrer a um próximo mandato (embora estivesse manobrando para alterar esta legislação e isso fosse percebido como golpismo). Foi mais negativo o fato de que o principal líder da esquerda democrática – Leonel Brizola, não podia se candidatar por ser casado com a irmã de João Goulart. Por este fator, o ex-governador do Rio Grande do Sul, líder da rede da legalidade e deputado proporcionalmente mais votado da história mas eleições de 62 (só que pelo Rio de Janeiro) – simplesmente não podia ser candidato, e acabou sendo um dos atores mais radicais, pressionando sempre contra uma composição de forças com os setores políticos moderados. Foi em grande parte o radicalismo de Brizola que dinamitou a aliança do PTB com o PSD (o que equivaleria nos dias de hoje ao PT tentar governar sem o PMDB – nossa política não mudou muito desde aquela época, só trocaram as letrinhas das siglas partidárias).
Além do radicalismo de Brizola, outros potenciais candidatos à sucessão de Jango também pagaram pra ver o “quanto pior melhor”: Ademar de Barros, governador de São Paulo – estado cujo empresariado foi decisivo no apoio ao golpe e depois ao Regime Militar; Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, que já tinha planejado um golpe para o qual teria o apoio militar dos EUA, com a operação Brother Sam; Carlos Lacerda, o histérico governador da Guanabara (e publisher do jornal Tribuna da Imprensa) – que tinha o apelido de “demolidor de presidentes”.
Compondo o quadro dos radicalismos inconsequentes à direita a à esquerda, havia também o líder das ligas camponesas Francisco Julião, eleito deputado federal, e que articulou apoio financeiro e armamentos vindos de Cuba para preparar uma guerrilha, mas cuja trama foi desarticulada pela polícia brasileira e descoberta pela CIA por um erro diplomático de Jango (o presidente fez a gentileza de devolver as armas a Fidel, e o avião foi descoberto quando teve problemas mecânicos na Bolívia).
O mais inconsequente politicamente foi mesmo o Jango. O próprio presidente não apoiava os vários gabinetes que formou no período parlamentarista, já interessado em passar o presidencialismo via plebiscito. Também jogou com o apoio das massas, afinal este tinha sido seu grande trunfo político dos tempos em que foi Ministro do Trabalho no último governo Vargas e vice-presidente de JK.
Mas como presidente esta estratégia tinha poucas possibilidades de dar bom resultado. Os autores mostram como a opção de anistiar sargentos e marinheiros revoltosos, atender sindicalistas e grevistas, fazer reforma agrária por decreto (quando ela vinha sendo discutida no congresso com apoio de todos os setores políticos) e discursar pessoalmente num mega comício no Rio de Janeiro – tudo isso somou para uma mudança radical de percepção política. De presidente constitucional cujo mandato devia ser defendido pelas forças democráticas em 1961, Jango rapidamente converteu-se numa ameaça, num presidente interessado em minar as instituições para perpetuar-se no poder com apoio dos setores radicais do PTB (e também com a ala moderada dos comunistas, que ficaram com PCB – o chamado “partidão”, de Luis Carlos Prestes).
Não custa enfatizar novamente: não existia uma ameaça de golpe comunista que pudesse preocupar os vários setores da sociedade que começaram a apoiar a derrubada do presidente. O medo era mesmo de que o presidente se apoiasse em forças como os sindicatos, os sargentos, líderes como Brizola, Arraes e Julião, e com isso se perpetuasse no poder realizando as prometidas reformas de base sem composição política com os setores conservadores.
A grande ilusão era a possibilidade de um rápido golpe preventivo, tanto que candidatos às eleições de 1965 foram favoráveis ao golpe na primeira hora (JK, Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto). Que os militares iriam implantar já nos primeiros dias uma violência desmedida contra as esquerdas, e que iam alijar os principais líderes de todos os matizes políticos – inclusive os pré-candidatos mencionados acima – para ficar no poder por 21 anos era uma coisa que realmente ninguém previa.
Além da detalhada descrição histórica e das excelentes avaliações que este livro nos traz, ele acaba nos levando a uma grande lição, que fica gritando nas páginas que nos descortinam este mundo do turbulento governo Jango.
Com a democracia não se brinca. Se ela não for cuidadosamente mantida em equilíbrio, as consequências são terrivelmente nefastas para todos.