A Gazeta do Povo trouxe hoje uma ótima matéria do Rafael Costa sobre os 40 anos da Camerata. Outro dia já tinha saído no blog Falando de música, vizinho aqui do portal, um texto do maestro Osvaldo Colarusso, a propósito do concerto comemorativo realizado em fins de março.
Ambos, a matéria da reportagem e o texto do maestro no blog, trouxeram importantes informações sobre a relevância do conjunto musical para a vida da cidade. Difícil eu dizer mais coisa útil nesse aspecto. Reforço, então, o que já está nos dois links apontados acima, tentando somar alguma coisa, e depois explico porque a comemoração é boa, mas também temos motivos de preocupação.
Do lado positivo, ou seja, o que temos para comemorar dos 40 anos:
A Camerata deixou uma marca na vida local e na cultura nacional por seu pioneirismo e pela qualidade de seu trabalho. Já fez viagens para apresentar-se em outros lugares do Brasil e fora do país (acho que mais recente foi a participação em uma programação coral na Alemanha, apresentando obras sacras de compositores brasileiros). Fez gravações numa época em que isso era bem mais difícil do que hoje, e participou ativamente tanto no processo de apresentar grandes obras do repertório antigo, clássico e moderno para o público Curibano, como no de fomentar e preservar a música brasileira.
Também estão apontados nos dois textos linkados acima a importância capital da Camerata na formação de algumas gerações de ouvintes e de músicos em Curitiba. Ressalta-se neste aspecto o papel crucial que os integrantes da Camerata tiveram na criação da Oficina de Música de Curitiba, na época em que nem o conjunto nem o festival tinham apoio da prefeitura. Ou seja, os músicos fizeram tudo com “a cara e a coragem”. Eles até mesmo fizeram mutirão para limpar o Solar do Barão a fim de que estivesse em condições de receber professores e alunos do curso que idealizaram em 1983 – talvez inspirados no sucesso dos Festivais de Música do Paraná das décadas anteriores, onde a própria Camerata foi formada.
Acho que não dá pra escrever a história do movimento da música antiga no Brasil sem falar da Camerata, um dos primeiros grupos dedicados ao repertório do Renascimento e do Barroco em nosso país.
Nesse sentido, foi muito justa a homenagem ao maestro Roberto de Regina, que viveu muitos anos na ponte-aérea Rio-Curitiba para dirigir o grupo, com um trabalho que foi especialmente significativo para o coro. Também a incansável Ingrid Müller Serafim que tocou cravo e fez a direção administrativa do grupo por muitos anos, também sendo a principal dirigente executiva da Oficina de Música na sua melhor fase (quando os interesses da prefeitura se voltaram para o Festival de Teatro, e a Oficina passou a ser esvaziada na gestão dos dois Cássios – o Taniguchi na prefeitura e o Chameki na FCC – isso só pode ser feito com o afastamento de “Dona Ingrid” das funções que exerceu com esmero por tantos anos). Não menos justa foi a homenagem a Walter Hoerner, violinista que estava no grupo quando de sua fundação, e passou os últimos 40 anos nas estantes, estando ainda incansável na ativa.
Talvez devêssemos ter homenageado também o maestro Lutero Rodrigues, cujo trabalho com a orquestra colocou o conjunto entre os principais grupos camerísticos do país e fez um trabalho notável na execução de compositores brasileiros. Posso testemunhar a importância que os concertos da Orquestra de Câmera com o maestro nos anos 1990 tiveram papel fundamental na minha formação – eu não teria me tornado um pesquisador interessado no modernismo musical brasileiro se não tivesse tido a oportunidade de ouvir o repertório ao vivo em ótimas execuções. Vale lembrar que Lutero Rodrigues também foi o diretor musical nos melhores anos da Oficina.
Fora isso tudo, dizer que um grupo completa 40 anos em atividade é muita coisa num país como o Brasil. As coisas por aqui são todas muito recentes, muita coisa antiga e pioneira foi descontinuada. Por exemplo, uma cidade como São Paulo não teve conjunto musical estável senão já na década de 1940, quando se efetivou a Orquestra do Teatro Municipal a partir das experiências descontínuas da Sociedade de Conceros Sinfônicos nos anos 1920 e 1930. O Rio de Janeiro, que tem tradição orquestral desde 1808, teve uma história de descontinuidades e reviravoltas. Primeiro foi a chegada da Real Capela de Lisboa, junto com a família real, que esteve ativa (interrompida no período da Regência – 1831-1843) até a proclamação da República. Depois foi a Sociedade de Concertos Sinfônicos mantida por Francisco Braga desde a virada do século até o início dos anos 1930. E finalmente a criação da Orquestra Sinfônica Brasileira em 1941, depois da inspiradora passagem da NBC Simphony de Toscanini pela América do Sul. Ou seja, dizer que a Camerata funciona sem interrupções desde 1974 é o bastante para dizer que o grupo é uma das coisas mais importantes do país.
Mas também tem a parte ruim, por isso o Lamento do título, brincando com as formas musicais do Barroco que a Camerata fez tanto para divulgar na capital dos pinheirais.
E a parte ruim é basicamente que nós curitibanos, incluindo nisso a população da cidade em geral, os órgãos de imprensa e o poder público, não damos o devido respeito e importância ao conjunto, que só começou e durou esse tempo todo porque os músicos tem a incrível qualidade da teimosia.
Para dar um exemplo disso, basta sabermos que o primeiro concerto da temporada 2014 foi justamente o comemorativo informado pelo Maestro Osvaldo Colarusso no texto que linkei acima. O maestro fez a palestra pré-concerto, e tivemos segundo ele uma grande execução da Missa Lord Nelson de Haydn (que eu infelizmente não vi). Tivemos ali tudo que se espera: bom regente, bons solistas convidados, bom palestrante, uma grande obra bem executada, bom público, homenagens históricas, presença do prefeito.
Aí deveríamos ter o segundo concerto nos últimos dias 11 e 12 de abril, com obras de Richard Strauss, Villa-Lobos e Dvorak. O palestrante seria este que vos escreve. Mas, qual não foi minha surpresa ao saber que o concerto foi cancelado. Adivinhem? Por falta de verba!
Uma no cravo, outra na ferradura.
Se pensarmos que a Camerata é o único grupo vocal profissional em atividade no estado do Paraná, veremos que o nosso estado é mesmo uma grande “roça”, um lugar retrógrado onde atividades artísticas e culturais são consideradas “frescura” e coisa dispensável pelos cowboys que fazem a nossa riqueza econômica e o mando político. Some-se a isso o fato de que o outro grupo estável que temos no estado (mas mantido por outro ente – o governo estadual, e não o municipal) acaba de jogar fora os três anos de trabalho de um ótimo maestro também por falta de apoio institucional (basicamente cancelamento de concertos por falta de verba, como já discuti neste texto aqui no blog).
Ou seja, temos um grupo com a importância da Camerata, seu peso histórico na cidade e no país, mas não lhe damos o devido valor. Temos uma programação tímida porque não dispomos de verba. Entenda o verbo “dispor” não no sentido de existência da verba, mas no sentido de decidir aplicá-la em uma coisa ou em outra. O que a Camerata consome por ano em recursos dá pra asfaltar uns poucos metros de rua, ou seja, nosso problema não é a falta de recursos, é a falta de visão mesmo.
Enquanto os governantes continuarem tendo razão pra pensar que podem desrespeitar um conjunto como a Camerata porque afinal, “isso não dá voto mesmo”, continuaremos a ter bem menos do que podemos de nosso conjunto. Acredito que nós, cidadãos, classe musical e imprensa precisamos deixar um pouco mais claro a importância que essas coisas têm para a cidade. Se afinal, vivemos num país onde falta visão administrativa para entender o poder multiplicador do investimento em serviços culturais, vamos bater panela na rua pra chamar a atenção dos responsáveis.
Aí, talvez daqui a 40 anos a gente possa voltar pra comemorar que o grupo ainda estará ativo, que terá gravado vários discos, que terá fomentado o repertório encomendando obras significativas, que terá colaborado para manter o patrimônio musical do país, que terá fomentado a produção local, que terá recebido os melhores regentes e solistas convidados, que terá se articulado com o sistema educacional da cidade, que terá participado de um programa mais ambicioso de formação de ouvintes e de formação de jovens músicos, etc. Tudo coisa que a Camerata tem plena condição técnica de fazer (e o faz muito mais do que poderia) – desde que lhe dediquemos um orçamento adequado, e um planejamento estratégico.
Não é tão difícil.
Aproveito para colocar aqui os links para os textos que escrevi nos últimos anos sobre a programação anual da Camerata e sobre seus concertos, em ordem do mais recente para o mais antigo: