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Sobre a Comissão da Verdade e um sofisma do historiador Marco Antônio Villa

Marcos Alves/Ag. O Globo

Dia 25 de junho a Gazeta publicou uma entrevista do historiador Marco Antonio Villa (foto) sobre a atuação da Comissão da Verdade. Em sua fala, o autor aponta para uma ineficiência deste tipo de comissão, dizendo que elas não descobrem nada que os historiadores já não saibam.

Quando perguntado sobre o que a Comissão deveria avançar, o historiador preconizou a abertura de arquivos para a pesquisa de historiadores.

Não creio que seja o caso de comparar a Comissão da Verdade com o trabalho historiográfico. São duas coisas muito diferentes. Apesar de a política ser em geral um assunto privilegiado nas pesquisas históricas, e o trabalho do historiador ter um conteúdo político muito evidente, há que separar as duas atividades. Políticos não têm compromisso com a verdade histórica nem com a pesquisa fundamentada. Seu compromisso é com a disputa pública de interesses – disputa na qual o historiador não pode estar envolvido sob pena de comprometer totalmente suas premissas.

Assim, é dever da comunidade de historiadores lutar pela abertura dos arquivos, e Marco Antônio Villa aponta corretamente neste sentido.

O objetivo da Comissão da Verdade é totalmente outro. Cabe a este tribunal político possibilitar um novo entendimento sobre o passado. Não se trata de escrever a história – para isso a Comissão não tem competência, capacidade, nem tempo hábil. Trata-se de construir um novo consenso, pois atualmente nosso marco legal foi totalmente pautado pelos militares em seu processo de abertura e transição controlada para um governo civil.

É sintomático que já estamos quase completando 30 anos desde que o último presidente militar deixou o cargo, e a transição foi feita por uma eleição indireta num Congresso Nacional eleito em um contexto de 20 anos de proibição da atuação dos partidos políticos e de restrição da atuação da sociedade civil junto ao Estado.

A Comissão da Verdade é tardia, mas necessária. E seu trabalho pode não ser uma grande maravilha, mas está abrindo novos espaços na política nacional. É importante que se diga que já estamos no terceiro presidente do Brasil oriundo dos setores políticos que combateram o Regime Militar. Tanto Fernando Henrique Cardoso (PSDB) como Lula (PT) e Dilma Roussef (PT) foram presos e/ou exilados pelo Regime Militar. A esquerda democrática assumiu o poder e os setores que sustentaram o Regime da caserna foram completamente derrotados, certo?

Errado. As feridas do Regime Militar estão abertas, a própria questão dos arquivos fechados aponta para isso. Também a ideia de que alguma Anistia pudesse perdoar o crime de torturadores que agiam em cargos públicos, sustentada de forma vil por nosso tribunal constitucional (STF). A demora no estabelecimento de uma Comissão da Verdade demonstra o quanto os militares e os setores retrógrados que eles vocalizaram politicamente ainda são fortes. O fato de que essa Comissão devesse se dedicar a violações de Direitos Humanos ocorridas desde 1946 foi um exagero evidente, para desviar o foco do período 1964-85. Se é para abarcar os períodos mais críticos, porque não investigar o tráfego negreiro e o genocídio indígena desde o século XVI? Afinal, são problemas que ainda não resolvemos, como demonstram as dificuldades em superar nosso racismo e solucionar as questões de demarcação de terras indígenas. Também seria mais coerente abarcar o Estado Novo varguista, e não o período chamado de “abertura”.

Entretanto, mesmo com suas limitações, a Comissão da Verdade avança. Limitando-me a comentar o que tenho ouvido na imprensa, já aponto para a questão de que a Comissão está fazendo pedidos que historiadores não teriam condições nem competência para tal – como exumar o corpo de Jango para determinar científica e juridicamente a causa de sua morte, ou investigar a morte de JK, sobre a qual pairam suspeitas que nunca puderam ser nem fundamentadas nem afastadas por completo.

Mas o pior de toda a entrevista do historiador foi a parte final, quando ele diz que é preciso investigar a ação de grupos armados de esquerda durante o Regime Militar. Interessante que o entrevistador, o jornalista Chico Marés, demonstrou muito mais capacidade intelectual em abordar a questão, forçando o historiador a considerar o óbvio: “Esses militantes já foram punidos durante a ditadura. Alguns mortos, outros presos, outros exilados. Voltar a esse assunto não seria uma forma de punir duas vezes as mesmas pessoas?”

E aí a gente entende onde está o sofisma. O problema de Marco Antônio Villa com a Comissão da Verdade é que ele está comprometido ideologicamente com o argumento que sustenta a validade histórica do Regime Militar: a ideia que ele veicula e defende é de que não tínhamos democracia mesmo, e a culpa do golpe é da esquerda revolucionária. Vale dizer que tal posição já foi sustentada publicamente por um Ministro do STF, o que talvez justifique a decisão do Tribunal augusto pró anistia dos criminosos de Estado.

E o sofisma é que, ao dizer que é preciso investigar a ação dos grupos armados de esquerda, ele vai contra o argumento que usou para dizer que a Comissão da Verdade não presta. No começo de sua entrevista, ele diz que a Comissão não está descobrindo nada que os historiadores já não tinham estudado. Isso não é verdade, como discuti acima. Mas por oposto, a ação de grupos armados e o ideal de Revolução Comunista que pautava setores da esquerda brasileira é um assunto já bastante analisado por historiadores. Podemos citar, apenas para ficar nos exemplos mais evidentes, os livros Prisioneiros do mito de Jorge Ferreira, ou A revolução faltou ao encontro de Daniel Arão Reis Filho.

Há muito que se avançar na pesquisa histórica sobre a luta armada, é certo que sim. Mas o julgamento político da esquerda revolucionária já está feito, e ela está sepultada como alternativa. Já o entulho autoritário do Regime Militar ainda precisa ser retirado para que sejamos uma sociedade mais democrática e mais justa. Isso é o que Marco Antônio Villa parece não querer enxergar.

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