Na noite de segunda-feira, o astrofísico Marcelo Gleiser dividiu o palco do Tuca com o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura desde 2007 e intelectual respeitadíssimo. É biblista de formação, mas suas palestras e escritos revelam uma ampla cultura geral que se manifesta, por exemplo, na facilidade que tem para ligar elementos da cultura universal com temas religiosos. Antes do encontro no Tuca, pude conversar com o cardeal Ravasi sobre a relação entre Igreja e ciência.
Por que os católicos deveriam se importar com a relação entre ciência e religião?
Por causa de uma característica da cultura contemporânea que repete a de outros tempos. No passado, entre várias disciplinas do saber humano, havia algumas que emergiam e se tornavam proeminentes. Foi assim com a filosofia nos séculos 18 e 19, e com a arte antes disso. Nesta nossa época, quem domina é a ciência, considerada hoje uma das principais e fundamentais formas de conhecimento, decisiva para a própria história da humanidade. Isso não há como negar. Mas também existe um risco: o de que a ciência simplifique ou reduza as outras modalidades de conhecimento que são igualmente importantes – a arte, que já mencionamos; a poesia, o amor, o conhecimento prático – ao ponto de tornar-se exclusiva. A ciência responde à pergunta “o que acontece?”, mostra-nos o cenário em que tudo se desenrola. Mas também precisamos nos perguntar “por que acontece?” e “qual o sentido disso tudo?” Por isso, é indispensável que, ao lado da ciência (que reconhecemos como importante, obviamente), estejam também outras modalidades “radicais” de conhecimento que lidem com as questões fundamentais.
Essa ambição de exclusividade difere a ciência dos outros saberes proeminentes do passado?
A ciência – ou, melhor dizendo, alguns cientistas – sofre, de fato, essa tentação. Mas, sendo ainda mais precisos, a tentação se manifesta de forma mais evidente na técnica, quando ela transforma os meios em fins. A verdadeira ciência é consciente de quão complexa é a realidade. Einstein, por exemplo, tinha uma forte sensibilidade religiosa, mística, à sua maneira. Já a técnica, que deveria ser instrumento, é invertida para se tornar o princípio dominante. Pergunta-se “é possível fazer isto?”, mas de um ponto de vista puramente material, não ético.
E, pelo menos no que diz respeito à Igreja Católica, o “conflito” se dá não com descobertas científicas, mas justamente com certas técnicas que violam a dignidade humana.
Exatamente. Até parece que a Igreja se oporia, por exemplo, ao uso da penicilina – eu não concordo, por exemplo, com as Testemunhas de Jeová, que por razões religiosas vetam o uso de técnicas médicas que beneficiam o homem sem causar outros danos. O verdadeiro problema é com certa técnica que não se interessa pela dimensão ética, isto é, que se vê como ilimitada, que não quer saber da reflexão que pergunta “isto é certo?” Um exemplo típico é o caso de Oppenheimer [Julius Robert Oppenheimer, físico americano integrante do Projeto Manhattan]. Ele estava estudando o átomo e viu que a técnica tornava possível produzir uma bomba atômica. Ele é cientista, e é também humano. Diz: “esta é uma possibilidade” – e é algo enorme, no sentido de dar ao homem tal capacidade de destruir –, e o que ele decide? Mais tarde, ele se tornaria um objetor de consciência. Tomou uma atitude de verdadeiro cientista. Então, o conflito aparece quando a técnica, sozinha, tenta se impor sobre todo o resto ignorando a ética. A verdadeira ética – não o moralismo, que é sua deturpação – não é um peso. Ela recorda que temos diante de nós o homem em sua plenitude, sempre, não só um amontoado de células ou órgãos, mas uma pessoa. Se eu tivesse de distinguir o essencial da ética, é isso: recordar o caráter pessoal do indivíduo. E a pessoa não se resume ao físico, à matéria.
Na abertura do Átrio, o senhor falou da importância de aprender a escutar. O que os religiosos deveriam aprender a ouvir dos cientistas?
Antes de mais nada, é preciso aprender a respeitar a ciência. O caso Galileu foi um exemplo de como não se pode forçar uma disciplina do modo como foi feito. Em segundo lugar, os religiosos devem compreender que a realidade humana inclui uma dimensão experimental. A carne, a corporeidade, a “fisicalidade” se ligam com a realidade cotidiana que é o objeto de estudo do cientista. O próprio cristianismo afirma isso, pois é a religião do divino feito carne: o Logos, o Verbo se fez homem. Sob essa luz, é preciso aprender a amar muito a corporeidade, amar a matéria; um exemplo disso foi Teilhard de Chardin. Não somos maniqueus que odeiam a matéria.
E como os padres podem transmitir a suas comunidades uma compreensão mais adequada da relação entre ciência e fé?
Esse é um percurso ainda complicado. Os poucos teólogos e especialistas que são competentes em ambos os campos precisam agir não tanto como estamos aqui, agora, em grandes eventos internacionais, mas preparando subsídios para utilização quotidiana assim como existem materiais para tantas outras áreas, como a pastoral e a catequese. Ainda precisamos criar uma maneira de trabalhar esse assunto. Há muito o que fazer, porque existem as grandes pesquisas sobre ciência e fé, mas também há o lugar-comum, as informações erradas que se ouve na escola… o aspecto didático-catequético a esse respeito precisa ser desenvolvido.
Publicamente, o papa Francisco não fala muito sobre ciência e fé, exceto por aquele famoso discurso sobre a evolução e o Big Bang. Dentro do Vaticano, como ele trata o trabalho envolvendo ciência e religião?
O nosso trabalho é dedicado à cultura, e o conceito de cultura que adotamos não é aquele iluminista do século 18, que consistia na aristocracia do pensamento. Então, o trabalho do Vaticano com ciência e fé não poderia se resumir ao Observatório Vaticano ou à Pontifícia Academia de Ciências, que são, sim, importantes. Também buscamos a dimensão pastoral, que o papa Francisco sempre enfatiza e encoraja. Então, assim como no Pontifício Conselho para a Cultura temos um conceito mais antropológico e transversal de cultura, interessando-nos por economia, pela cultura dos jovens, das mulheres, pela linguagem, pelas comunicações, temos o exemplo do Átrio dos Gentios, que é a aplicação pastoral do diálogo com os não crentes e também com o mundo da ciência.
Mas não é só isso, certo? O Pontifício Conselho para a Cultura já tem uma parceria de anos com uma fundação para a pesquisa com células-tronco adultas…
Sim, e na próxima semana teremos nosso terceiro congresso internacional sobre medicina regenerativa, que inclui também a pesquisa com células-tronco. Desta vez trataremos de doenças raras em crianças, enfermidades que estão fora do radar da indústria farmacêutica porque a pesquisa que não interessa do ponto de vista econômico. Contaremos, inclusive, com a presença do vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A próxima etapa será a neurociência.
Disso não se fala tanto. Esse silêncio não ajuda a perpetuar a mitologia que existe sobre a relação entre ciência e Igreja?
Sim, o caso Galileu mesmo é o caso acabado dessa mitologia; dizem que a Igreja quase o matou de fome, que o colocou na cadeia, enfim, um monte de mentiras. Quanto a esses eventos, talvez a divulgação não seja tanta porque essa conversa se dá em um nível que, se não é exatamente um nível de pesquisa, é certamente bastante qualificado, mais dirigido à comunidade científica, e por isso não necessariamente chega ao grande público.
(Leia também a entrevista com Marcelo Gleiser feita durante o Átrio dos Gentios)
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