Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo

Como é difícil matar uma lenda

Essa ilustração que descreve uma aula de dissecação na faculdade de Medicina de Montpellier é de 1363. Como isso seria possível se a prática estivesse proibida pela Igreja? (Foto: )

Um amigo, leitor do Tubo, me mandou as seguintes fotos. São do livro de História que uma de suas filhas vai usar ao longo de todo o ensino médio. Talvez as letras fiquem miudinhas na largura do blog, mas, se eu fiz tudo certo, basta vocês clicarem nas fotos que elas abrem num tamanho maior.

O que nossos adolescentes andam aprendendo sobre a medicina na Idade Média?

O que nossos adolescentes andam aprendendo sobre a medicina na Idade Média? (Foto: Wagner Marchiori)

Senta que lá vem a história. Fictícia, neste caso. (Foto: Wagner Marchiori)

Senta que lá vem a história. Fictícia, neste caso. (Foto: Wagner Marchiori)

Caso ainda esteja complicado ler, ou caso não seja possível ver a imagem no tamanho original, copio aqui os trechos que nos dizem respeito:

Na primeira foto: Os estudos médicos e as descobertas biológicas da época moderna eram vistos com desconfiança pela Igreja. Muitos temiam as perseguições inquisitoriais por se dedicarem ao estudo científico. Um exemplo desse receio encontra-se na dissecação de cadáveres, que acabou se tornando comum no estudo da Medicina, mas naquela época era condenada. Leonardo da Vinci, grande artista e sábio do Renascimento, era um dos que praticava a dissecação de cadáveres em seus estudos de anatomia.

Na segunda foto: A liberdade maior das escolas de Medicina em relação à religião decorreu, em boa parte, da decisão do papa Honório III, que proibiu os clérigos de exercê-la. Diversos médicos passaram a dissecar cadáveres para entender o funcionamento do corpo humano, prática totalmente condenada por diversas religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo, Islamismo). Alguns médicos, como Andreas Vesalius, do século XVI, chegaram a roubar cadáveres para seus estudos.

O livro é História — Volume único, de Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos.

E é tudo mentira. Há três anos eu já tinha publicado um post no Tubo sobre a lenda da proibição da dissecação de cadáveres. Repito aqui o que escreveu Katharine Park, professora de História da Ciência da Universidade de Harvard, no livro Galileo goes to jail and other myths about science and religion: A maioria das autoridades religiosas medievais não apenas tolerava, mas incentivava a abertura e desmembramento de corpos humanos para fins religiosos: corpos de santos eram eviscerados e embalsamados; eram divididos para produzir relíquias; os órgãos internos de homens e mulheres santos eram examinados em busca de sinais de santidade (…) tudo isso derruba a alegação de que a Igreja, como instituição, era comprometida com a integridade do corpo humano após a morte. Vejam lá no post outras informações relevantes sobre esse tema.

E mesmo a proibição de que clérigos exercessem a medicina não era absoluta, como diz a Enciclopédia Católica. A decisão de Honório III, por exemplo, citada no livro, não se aplicava a todos os clérigos, mas aos que tinham algum tipo de dignidade eclesiástica, como cônegos. Em caso de emergência, ou para atender os pobres em locais sem médicos, por exemplo, a restrição era levantada.

Essa ilustração que descreve uma aula de dissecação na faculdade de Medicina de Montpellier é de 1363. Como isso seria possível se a prática estivesse proibida pela Igreja?

Essa ilustração que descreve uma aula de dissecação na faculdade de Medicina de Montpellier é de 1363. Como isso seria possível se a prática estivesse proibida pela Igreja?

Agora, como é que uma lorota dessa, anos depois de ter sido desmascarada, continua aparecendo em livros didáticos? As hipóteses são várias. Não descarto a desinformação pura e simples. Já comentei muitas vezes aqui no blog que muito do que é produzido na academia sobre a história da relação entre ciência e fé não faz o salto para a opinião pública. Mas, convenhamos, é obrigatório para quem elabora livros didáticos estar atualizado em relação ao que se conhece sobre o tema abordado. Os autores deviam saber que a Igreja nunca condenou a dissecação. Também pode haver ideologização. Autores e professores de esquerda (e são muitos, e bem espalhados por aí) costumam retratar da pior maneira possível certos países, pessoas e instituições, e a Igreja Católica é uma delas. Ou pode haver um preconceito antirreligioso em geral, que se reflete no modo como a relação entre ciência e fé é demonstrada. Nesses dois casos, não costuma haver muito compromisso com a verdade.

Só espero que a filha do meu amigo saiba contestar essa mentirada toda na hora da aula.

——

Prêmio Top Blog, votação estendida!
Devia ter acabado no dia 9 a primeira rodada de votação da edição 2013 do prêmio Top Blog, mas resolveram adiar o prazo para… 25 de janeiro de 2014! Suponho que seja pela incompetência da organização, que deixou na mão os blogueiros que usam WordPress ao inventar um selo em Java, que o WordPress recusa (parece que agora estão resolvendo o problema). Em 2010 e 2011, o Tubo venceu a categoria “Religião/blogs profissionais” pelo voto popular. Em 2012, não ficamos entre os finalistas, mas o Blog Animal, também da Gazeta, venceu sua categoria pelo júri acadêmico. Para votar no Tubo, basta você clicar aqui ou no banner ao lado. Cada conta de e-mail só pode votar uma vez no mesmo blog, mas nada impede que, com uma mesma conta de e-mail, você possa votar em vários blogs de sua preferência. Da mesma forma, você pode votar no Tubo mais de uma vez se tiver duas ou mais contas de e-mail. Basta preencher, no alto da página do prêmio, seu nome e e-mail. Você receberá uma mensagem com um link para confirmar seu voto. Também é possível votar pelo Facebook.

——

Você pode seguir o Tubo de Ensaio no Twitter e curtir o blog no Facebook!

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.