Richard Feynman, apesar de ateu, não defendia que a ciência pode provar a inexistência de Deus. (Foto: Divulgação / Fermilab)
Filho de judeus devotos, o físico norte-americano Richard Feynman era ateu. Mas nem por isso defendia uma incompatibilidade entre ciência e religião, ou achava irracional que um cientista tivesse fé religiosa. Na semana que vem, uma palestra que Feynman deu no California Institute of Technology (Caltech) faz 57 anos. Em “The relation of science and religion”, o físico se pergunta como um cientista pode acreditar em Deus, e explica em que bases isso é possível.
Para defender essa possibilidade, Feynman parte de uma história familiar: a do jovem que, criado em uma família religiosa, começa a estudar ciência e passa a duvidar. E por que isso acontece?, pergunta-se o físico. Ele descarta duas hipóteses iniciais para afirmar que “Uma terceira resposta que poderíamos ter é que esse jovem realmente não entende a ciência corretamente. Não creio que a ciência possa desmentir a existência de Deus. Acho que isso é impossível. E, se é impossível, a crença na ciência e em Deus – um Deus comum, das religiões – não seria uma possibilidade consistente? Sim, é consistente. Apesar de eu ter dito que mais da metade dos cientistas não crê em Deus, muitos outros cientistas creem tanto na ciência quanto em Deus de uma forma perfeitamente consistente. Mas essa consistência, embora possível, não é fácil de alcançar, e eu gostaria de tentar discutir dois pontos: por que não é fácil, e se vale a pena tentar alcançá-la”. O que chama a atenção nesse trecho é que Feynman discorda da noção de que a ciência conduz inevitavelmente ao ateísmo.
A chave que abre espaço para a crença em Deus, explicará Feynman, é a incerteza. Ela é fundamental para a ciência, e é o que impulsiona a pesquisa científica. “Para progredir no conhecimento precisamos permanecer humildes e admitir que não sabemos. Nada está certo ou comprovado para além de qualquer dúvida. Você pesquisa por curiosidade, porque é desconhecido, não porque você já sabe a resposta.” Feynman defende que tenhamos isso em mente não apenas na ciência, mas em diversos outros aspectos da vida.
Como isso se aplica à crença em Deus? Feynman retorna ao caso do jovem cientista e afirma que, quando se incorpora a mentalidade da incerteza, a pergunta muda de “Deus existe” para “Quão certo é que exista um Deus?” Falando dos cientistas que têm fé, Feynman afirma: “Se eles são coerentes com sua ciência, acho que eles dizem a si mesmos algo como ‘Estou quase certo de que existe um Deus. A dúvida é mínima’. Isso é bem diferente de dizer ‘Eu sei que Deus existe’. Eu não acredito que um cientista seja capaz de chegar a esse ponto – essa compreensão realmente religiosa, esse conhecimento real de que existe um Deus –, a essa certeza absoluta que as pessoas religiosas têm”.
Tomé teve a evidência empírica da ressurreição, mas esse é um privilégio que poucos tiveram. Nós precisamos dá fé, e com ela vem a dúvida. (Imagem: Reprodução)
Vale a pena ler todo o resto da palestra. Nele, Feynman trata da alegada irracionalidade da crença em Deus, do caráter anticientífico do socialismo, e da relação entre a ciência e os aspectos metafísico, moral e inspiracional da religião, entre outros temas. Mas eu queria ficar aqui na distinção que o físico traça entre a “maneira como o cientista crê” e a “maneira como o não cientista crê”.
Os dicionários (inclusive dicionários de Teologia) registram a expressão “fé do carvoeiro” como sinônimo de fé cega, inquestionável, sem fundamentos. Difícil saber quanta gente de fé hoje crê dessa maneira (mas, isso é minha opinião pessoal, tal fé também tem valor, especialmente entre quem não tem a possibilidade de se aprofundar naquilo em que crê). Mas, entre aqueles que têm a chance de estudar pelo menos um pouco sobre sua religião, acho que a dúvida é um fator que sempre faz parte do jogo, independentemente de a pessoa ser cientista ou não. Não sei se, ao falar de “certeza absoluta que as pessoas religiosas têm”, Feynman se referia à tal “fé do carvoeiro” ou de algum outro tipo de certeza mais fundamentada, como por exemplo a certeza filosófica (que um cientificista abominaria, como bem sabemos). Mas não me parece que haja tanta diferença assim entre a maneira como o cientista crê em Deus e a maneira como as demais pessoas o fazem. Eu agradeceria se os leitores que são crentes e cientistas pudessem contar um pouco sobre sua experiência pessoal.
Muito tempo atrás li um ótimo texto sobre como a dúvida é parte integrante da fé. Pena que não guardei a referência. Até tentei uma busca enquanto escrevia esse post, mas não achei o artigo que eu tinha lido. Mas, em vez disso, apareceram algumas contribuições interessantes, como as de Philip Yancey, Ray Pritchard, Doug Gibson e William Lane Craig.
Obrigado!
Queria agradecer às dezenas de pessoas que estiveram na Escola do Bosque no sábado passado, para minha palestra sobre ciência e fé na mídia. Apesar de eu estar com a bateria pela metade, foi muito bom poder conhecer alguns dos leitores do blog e poder contribuir para o debate.
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