Uma reportagem da CBS News chamou minha atenção na semana passada. Médicos britânicos observaram, ao longo de três anos, 203 casos envolvendo crianças cujo estado de saúde foi declarado irreversível pelos médicos, que aconselharam a interrupção de tratamentos como o uso de ventilação artificial. A remoção do suporte avançado de manutenção da vida, como sabemos, muito provavelmente leva à morte do paciente. A pesquisa, publicada no Journal of Medical Ethics, afirma que em 186 dos 203 casos os pais concordaram com o diagnóstico e autorizaram o fim do tratamento intensivo. Nos outros 17 casos, os pais insistiram em manter os filhos vivos – em 11 deles, a insistência se deu por motivos religiosos; as famílias ainda tinham a esperança de um milagre ou intervenção divina que devolvesse a saúde à criança. Esses 11 episódios envolviam pais católicos, protestantes, judeus e muçulmanos.
Pesquisando sobre como várias religiões lidam com as questões referentes ao fim da vida, é possível encontrar uma tendência comum. Boa parte delas, se não a maioria, condena a eutanásia, ou seja, a ação direta com a intenção de tirar a vida da pessoa. Mas isso não significa defender o prolongamento indefinido da agonia do paciente terminal. Vejam o que o Catecismo da Igreja Católica diz em seu capítulo sobre o quinto mandamento:
2278. A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados, pode ser legítima. É a rejeição da “obstinação terapêutica”. Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o fato de a não poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e capacidade; do contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente.
2279. Mesmo que a morte seja considerada iminente, os cuidados habitualmente devidos a uma pessoa doente não podem ser legitimamente interrompidos. O uso dos analgésicos para aliviar os sofrimentos do moribundo, mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias, pode ser moralmente conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem como fim nem como meio, mas somente prevista e tolerada como inevitável. Os cuidados paliativos constituem uma forma excepcional da caridade desinteressada; a esse título, devem ser encorajados.
Na encíclica Evangelium Vitae, publicada três anos depois do Catecismo, João Paulo II retoma o raciocínio:
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado “excesso terapêutico”, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua família.
Ou seja, em situações irreversíveis é lícito retirar os aparelhos que mantêm artificialmente a vida do paciente; mas de forma alguma é aceitável interromper a alimentação, a hidratação e o alívio da dor.
Também entre os protestantes, segundo uma pesquisa feita pelo padre Leo Pessini, existe um consenso contrário à eutanásia (são raríssimas as denominações que aceitam uma intervenção ativa para provocar a morte do paciente) e tolerante ou favorável à ortotanásia, entendida como a “morte correta”, em que não existe nem o prolongamento inútil da agonia do paciente, nem uma ação que abrevie sua vida.
O Código de Ética Médica Islâmica tem uma visão bem parecida em seu capítulo sobre a santidade da vida humana:
Se é cientificamente certo que a vida não pode ser restaurada, então é uma futilidade manter o paciente em estado vegetativo utilizando-se de medidas heroicas de animação ou preservá-lo por congelamento ou outros métodos artificiais. O médico tem como objetivo manter o processo da vida e não o processo do morrer.
O judaísmo também condena ações diretas com o objetivo de tirar a vida do paciente, mas o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, explica que a religião chancela a ortotanásia quanto os médicos atestam que não existem perspectivas de recuperação para o paciente e a família acata o diagnóstico. “Levamos muito em conta a opinião da equipe médica; existem casos, como os de morte encefálica, em que aquele momento é valioso inclusive porque permite a doação de órgãos. Casos de coma já são mais complicados, porque mesmo pacientes desacreditados voltam e se recuperam. Isso mostra como, apesar de existirem regras, não podemos generalizar indiscriminadamente”, afirma. Schlesinger ressalta, inclusive, que a ortotanásia permite à família preparar, de forma mais serena, o momento da despedida.
Mas, em situações como essas, não basta apenas considerar a teoria. Tanto o rabino Schlesinger quanto o teólogo católico Mario Sanches, especialista em Bioética e coordenador do programa de pós-graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), lembram um aspecto fundamental em relação ao estudo britânico: nenhuma família, religiosa ou não, está suficientemente preparada para lidar com a perda de um filho. “A obstinação terapêutica é mais comum na pediatria que em outros setores. Podemos dizer que com nossos filhos cometemos excessos em muitos momentos, e esse é um exemplo”, afirma Sanches. “A perda de um filho modifica uma família para sempre”, acrescenta Schlesinger, para quem é menos complicado aceitar a perda quando se trata de um parente idoso. Essas visões são reforçadas pelo fato de ainda ter havido casos, no estudo britânico, em que a insistência na manutenção do suporte avançado de vida para as crianças foi defendida pela família por motivos que não tinham a ver com religião.
E é por isso que Sanches e Schlesinger se mostram bastante compreensivos com as famílias que optaram por manter seus filhos vivos na esperança de um milagre que restituísse a saúde ao paciente. Para o teólogo católico, a Igreja considera aceitável renunciar ou limitar tratamentos tidos como extraordinários, mas não obriga os pais a tomarem esta decisão. “É mais difícil tomar decisões objetivas na hora da dor, e pode-se assumir uma atitude de expectativa por um milagre. Trata-se apenas de uma situação onde não se sabe o que fazer, de um processo de elaboração da possibilidade de se perder um filho”, afirma Sanches. “Se a família tem fé e se agarra àquela chance mínima, quem é que pode impedir? Muito menos nós, líderes religiosos que compartilhamos daquela fé. Vejo nosso papel mais como de apoiadores da família no momento difícil. Não estamos lá para tomar a iniciativa de induzir ou impedir a decisão dos parentes”, explica Schlesinger.
Dias atrás, aqui no blog, o padre Juarez Rangel disse que eram justamente nos temas relativos ao fim da vida que ele via mais desinformação entre os católicos. É possível que as pessoas, sabendo que a Igreja condena a eutanásia, acabem imaginando (equivocadamente) que isso significa manter a vida humana a qualquer custo. O rabino Michel Schlesinger acredita que essa percepção também pode ser aplicada a outras religiões que têm o mesmo posicionamento sobre a eutanásia. Sem outras informações (enviei uma série de perguntas a um dos autores da pesquisa, mas ele não respondeu; caso eu receba um retorno, atualizarei o post), não temos como saber qual era a profundidade do conhecimento que essas 11 famílias tinham sobre a doutrina de suas respectivas religiões. É possível que elas simplesmente interpretassem erradamente a doutrina sobre a eutanásia e achassem que seria ilícito remover o suporte avançado de vida. Mas não descarto o caso de famílias que estavam bem informadas sobre a licitude da ortotanásia e, ainda assim, queriam manter seus filhos vivos.
Vale a pena recordar que, em cinco dos 11 casos mencionados na pesquisa britânica, os pais autorizaram a retirada do suporte avançado de vida após conversar com líderes religiosos. Mas também não temos como saber o que foi dito a essas famílias e que as fez mudar de ideia. De qualquer modo, também considero interessante a abordagem do médico Arthur Caplan, entrevistado pela CBS. Diante de um caso semelhante aos vistos na pesquisa – um bebê de seis meses em estado irreversível cuja mãe insistia no tratamento por esperar um milagre –, Caplan explicou à mãe que, se Deus realmente fosse operar uma cura extraordinária, Ele o faria independentemente de a criança estar ou não submetida aos meios avançados de manutenção da vida. Ao ouvir esse argumento, ela permitiu que os equipamentos fossem desligados. Eu, particularmente, acho que é ainda mais importante que os líderes religiosos estejam acompanhando as famílias e fortalecendo sua fé nesses momentos em que os pais se convencem de que o milagre pelo qual tanto esperam não virá.
A pesquisa britânica, além de apresentar os resultados da observação dos 203 casos, ainda sugere que a legislação do país seja alterada para dar mais poder de decisão aos médicos em situações como os 17 casos de impasse entre pais e equipe médica. É aí que a coisa fica muito complicada. Temos dois princípios bioéticos em choque direto: o da autonomia e o da não maleficência. Qual deles prevalece? Para Sanches e Schlesinger, deve ser a autonomia. “Eu acredito muito no diálogo, não na decisão unilateral. Médicos e familiares precisam construir um consenso, e os pais têm o direito de incluir quem mais acharem necessário nessa conversa. Mas, se mesmo assim não surge uma decisão comum, acho que a palavra final tem de ficar com a família”, afirma o rabino. “Não vejo como aceitável que os médicos decidam sobre estas questões sem a autorização da família; podem argumentar e orientar, mas a autonomia dos pais precisa ser preservada”, acrescenta o teólogo.
Sanches ainda aconselha que as famílias incentivem a discussão sobre esses temas antes que circunstâncias trágicas forcem uma decisão. “As pessoas que refletem sobre estas questões, que conversam em casa sobre o que fazer caso alguém da família venha a passar por uma situação semelhante, têm mais facilidade em tomar decisões mais objetivas e que de fato contemplem o bem do paciente, não o expondo a um prolongamento excessivo de agonia”, afirma. E o rabino Michel Schlesinger gostaria de ver os líderes religiosos mais envolvidos nessas situações. “De modo geral, não estamos preparados para isso. Enfrentamos pouco esses dilemas durante nossa formação. Lemos muitos livros, e vemos pouca gente”, lamenta.
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