Artigo
Acima de tudo, um grande narrador
George Orwell era um competente contador de histórias. Não fosse isso, a visão de mundo engajada pesaria demais na sua literatura. Ela não teria resistido incólume ao passar do tempo, como resistiu. Com a destreza narrativa de Orwell, como não se encantar com a vida de John Flory, personagem central de Dias na Birmânia, que se apaixona, é enganado, se sente só e se desespera? Por que tantos enfrentariam a longa narrativa de 1984 sobre um mundo sombrio e absurdo, se não fosse pelo texto bem escrito? E mais, de onde vem o encantamento do conto Matando um Elefante, se não do estilo de Orwell? São todos livros que permitem uma leitura política, é verdade. Mas são todos, acima de tudo, livros muito bem escritos.
Junto com Rudyard Kipling, Orwell inaugurou o que viria a ser uma característica marcante da literatura britânica. As obras mais universais, mais interessantes vêm de autores ligados de alguma forma às colônias. Seja ao visitar uma livraria de Londres ou ao ler as traduções publicadas no Brasil de ficção britânica, salta aos olhos: os nascidos em países que fizeram parte do Império (como V.S. Naipul, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer) ou que são filhos dos colonos (como Monica Ali, Zadie Smith e Hanif Kureishi) são as estrelas da literatura britânica há algumas décadas.
A raiz desse fenômeno está lá atrás, na época em que, para usar um clichê daqueles anos, o sol nunca se punha nas terras da rainha, imensas que elas eram. Naquele período, escritores de famílias britânicas que haviam vivido em colônias produziam os livros que conseguiram sobreviver ao tempo e que lemos ainda hoje. A estranheza do mundo novo em contraste com a cultura europeia provocava reflexões que davam uma energia nova aos textos de autores como Orwell. Mais que tudo, era o desconforto diante dos comportamentos reacionários que os próprios britânicos tinham diante da estranheza das colônias que imprimia vigor aos livros de Orwell e alguns de seus conterrâneos. Sem a padronização de comportamento atrás da qual podiam se proteger em casa, os britânicos agiam como se estivessem nus situação perfeita para a literatura.
Orwell era um inglês que viajava muito, mas que, em todo lugar por onde andava, inclusive em casa, se via como um estrangeiro. Circulando pelo interior da Inglaterra, descobriu o mundo dos mineiros do Norte e, chocado com a pobreza reinante, escreveu O Caminho para Wigan Pier. Neste caso, não se trata de ficção, mas de jornalismo. Mais especificamente de novo jornalismo, nome que seria criado pelos norte-americanos quase duas décadas depois. Em outra ocasião, viveu com mendigos que circulavam por Londres e arredores. Desta vez, o mundo novo não estava na Ásia, mas bem perto de sua casa. Os mendigos, contou Orwell em uma espécie de longa reportagem publicada com o título de Na Pior em Paris e Londres, viviam em um mundo muito particular que ia se descortinando aos poucos diante de seus olhos. Por exemplo, foi fácil o escritor notar que eles adoravam falar sobre sexo, especialmente de contar e ouvir casos sórdidos e grotescos. Mas precisou ficar algumas semanas com eles para entender que os mendigos nunca faziam sexo. Ou seja, falar era a forma que tinham para dar vazão a libido.
Engajamento
Os mendigos não são heróis no livro de Orwell, assim como não é a protagonista desorientada de A Filha do Reverendo, nem o inglês que mata o elefante, nem John Flory. O engajamento político não influenciou nos rumos que ele dava para seus personagens, pelo menos não no sentido de glorificá-los ou santificá-los. Graças a isso, qualquer livro de Orwell continua sendo uma boa leitura.
Marleth Silva
Só importa como você pensa
Por fotos, George Orwell parecia ser alto, muito magro e extremamente britânico. Um John Cleese das letras a referência só vai fazer sentido para quem conhece o comediante inglês que integrou o grupo Monty Python. Para o ensaísta Christopher Hitchens, Orwell era "magricela mas divertido, altivo mas de modo nenhum vaidoso".
Tarefa das mais difíceis, separar a vida do escritor George Orwell de sua ficção. Nascido na Índia em 1903, em meio a uma decadente aristocracia britânica, recebeu o nome de Eric Arthur Blair. Mas abandonou tudo: o status, o dinheiro, e até o nome, para se aventurar no mundo sob o pseudônimo que o tornaria célebre e que faria de sua própria vida a maior ficção de todas. Blair, ou melhor, George Orwell, teve uma vida agitada: foi policial na Birmânia (atual Miamar), conviveu com trabalhadores braçais de minas e portos ingleses, passou fome e frio em Londres, onde morou nas ruas e em abrigos para sem-tetos e lutou na Espanha, durante a guerra civil de 1936.
Era de se esperar, portanto, que o autor morto há 61 anos fizesse de suas próprias experiências a matéria-prima de seus livros. O que não quer dizer que tivesse sido exclusivamente um memorialista ou ensaísta. Suas ficções, claramente panfletárias, defendiam os ideais que adquiriu durante a vida, e se tornou mundialmente conhecido por duas delas: a novela metafórica A Revolução dos Bichos (publicada em 1945), e a distopia 1984 (publicada em 1949) sua obra mais citada, por retratar o "Grande Irmão", aparato fiscalizador de um governo fictício que emprestou seu nome ao reality show mais famoso do mundo.
Não é à toa que as duas obras são consideradas as mais importantes da carreira de Orwell. Ambas resumem bem a crítica a todo tipo de totalitarismo (seja de direita ou esquerda), que manobra as massas enquanto atende aos interesses de uma minoria.
A pequena novela que conta a estória de uma fazenda na qual os animais fazem uma revolução para se livrar da opressão do homem retrata essa perda de liberdade de uma maneira que é, ao mesmo tempo, sutil por ser metafórica e incisiva, por não haver dúvidas quanto à intenção dos porcos que logo assumem o poder sob os outros animais. A frase do livro que se tornou célebre, "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros", é um exemplo de como o governo corrupto distorce leis e, dessa forma, manipula o povo. Não por acaso, a expressão é constantemente parafraseada na crítica à política nacional, sendo por vezes considerada um exemplo do chamado "jeitinho brasileiro". O próprio Orwell poderia ter sido um animal da Manor Farm, a fazenda onde se passa o enredo: teve exatamente o mesmo entusiasmo e a decepção subsequente em relação ao comunismo prometido por Stalin e o inferno totalitarista que, em realidade, se formou na União Soviética.
Já em 1984, considerado por muitos sua obra-prima, acrescenta-se ao terror dos elementos de Revolução dos Bichos o controle ideológico da população por meio de aparelhos monitoradores instalados em toda parte, vigiados pelo Grande Irmão. Personificação do "Partido", grupo que está no poder e que oprime de forma explícita sob o lema "Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força" e até mesmo distorce a história mundial, o Grande Irmão coage a todos que se opõem ao governo. O poder, no livro, é então desafiado pelo protagonista, Winston Smith, que percebe a manipulação quando profere a frase "Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado". Essa mesma frase, em inglês, foi usada pela banda estadunidense Rage Against the Machine, na música "Testify", que critica a massificação da política dos Estados Unidos durante a primeira eleição do ex-presidente George W. Bush, e a amenização dos fatos da Guerra do Golfo (ocorrido em 1990) com propaganda intensa e manipulação da mídia. Fatos que ocorreram cinquenta anos após a morte de Orwell.
Orwell, o leitor
O fato de Orwell ser um autor que usa sua vivência para escrever sendo nesse sentido, o oposto dos escritores de biblioteca, como Jorge Luis Borges, por exemplo não significa que fosse impassível à influência de suas leituras, embora seja bem verdade que leu muito pouco. Em um pequeno texto, intitulado Nota Autobiográfica, publicado em 1942 pela editora britânica Twentieth Century Authors, o escritor comenta que entre seus escritores favoritos estão clássicos da literatura, como Shakespeare, Jonathan Swift, Émile Zola e Gustave Flaubert, mas ressalta que, entre os contemporâneos, o autor que mais marcou sua vida foi o britânico William Somerset Maugham (1874-1965).
Orwell dizia que admirava Maugham imensamente por sua "capacidade de contar uma estória direta e sem afetações". Mas as semelhanças entre os dois vão muito além do estilo de escrita. Enquanto Orwell começou a carreira profissional aos 19 anos como policial na Birmânia (atual Mianmar) experiência que lhe renderia material para mais tarde escrever a ficção Dias na Birmânia (1934) Maugham também começou não como escritor, mas como detetive. É o que conta o escritor e crítico literário José Castello. Para ele, os dois autores se aproximam no temperamento e no estilo de vida.
Maugham também teve sua dose de contato com o real, trabalhando como médico e atuando a serviço da Inteligência Britânica em Moscou, durante a revolução russa de 1917. Por isso, conta Castello, "ambos são, cada um a seu modo, escritores realistas embora o realismo seja, hoje, uma categoria precária, que quase não dá conta de si mesma. De qualquer modo, escreveram debruçados sobre a realidade, agarrados a ela, e com a intenção deliberada de transformá-la através da palavra".
A experiência com o real
Das obras não-ficcionais de George Orwell, destacam-se três livros de memórias que, na opinião do jornalista Mario Sergio Conti, formam uma trilogia crucial para entender a transformação social do autor, de burguês a militante panfletário: Na Pior em Paris e Londres (1933), que relata o período em que encarou a pobreza extrema nas ruas dessas cidades de onde, inclusive, surgiu a necessidade de um pseudônimo, pois sentiu que poderia envergonhar a sua família por publicar um relato tão duro; O Caminho para Wigan Pier (1937), um relato inflamado e direto sobre as condições de trabalho dos mineradores do norte da Inglaterra; e Homenagem à Catalunh (1938), sobre sua atuação na Guerra Civil Espanhola. Experiência que, segundo o autor, mudou por completo seu modo de pensar. "A guerra espanhola e outros eventos entre 1936-37 fizeram a balança pender, e depois disso eu sabia onde estava. Cada linha de trabalho sério que redigi desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o conheço", escreveu Orwell, em 1947, no ensaio intitulado Por que escrevo.
Conti explica, em seu posfácio de O Caminho para Wigan Pier, que Orwell passou de uma relação de caráter sentimental e burguesa com os pobres, em Na Pior em Paris e Londres, para uma posição política sólida em Homenagem à Catalunha: "Orwell foi à Espanha para escrever sobre a guerra civil, e não para participar da luta. Ao chegar a Barcelona, sofreu o impacto da efervescência revolucionária (...) Alistou-se então para defender a república socializante. (...) Numa trincheira, levou um tiro que lhe atravessou a garganta e saiu pela nuca. Não morreu por pouco e, enquanto convalescia, aprendeu à força o que é a política num momento de aceleração da história: violência, mentira, luta de vida e morte por interesses materiais e poder".
Orwell ofereceu ao mundo, até morrer de tuberculose aos 46 anos, em 1950, uma visão original para sua época sobre o vínculo entre ideologia e literatura, entre vida e obra, entre a ficção futurista e a realidade do presente. "Sua maior contribuição para a literatura do século 20 foi, provavelmente, o modo como ligou a escrita ficcional ao real. Não que todos devam seguir esse caminho seria provavelmente a morte da literatura. Mas há um vínculo entre o escritor e seu mundo que nem a escrita mais abstrata chega a dissolver e Orwell, todo o tempo, chama nossa atenção para ele", afirma José Castello.
Na lápide do autor, não há nenhuma referência a George Orwell. Lê-se, simplesmente "Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950". Como Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, George Orwell superou a morte de seu criador e segue, com suas ideias e ideais, muito além da vida e do Big Brother.
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