Opinião
Novo espetáculo da Vigor Mortis tem Zé do Caixão como entidade demoníaca
Rodolfo Stancki, repórter
Primeiro cineasta a trazer o horror para o Brasil, José Mojica Marins passou os anos 1990 animando plateias em programas populares, parques e bingos. Assim contam os autores Ivan Finotti e André Barcinski em Maldito, a biografia do diretor. Esse momento decadente da vida do criador de Zé do Caixão é o ponto de partida do espetáculo À Meia-noite Levarei Teu Cadáver, da Companhia Vigor Mortis.
Dirigido por Paulo Biscaia, o monólogo coloca o ator Leandro Daniel Colombo na pele de Gregório General, um cineasta desestimulado pelo sistema burocrático de produção do cinema nacional. Desesperado por ideias para ganhar um edital, ele vai buscar inspiração num bingo animado por Mojica vestido de Zé do Caixão.
Depois de vislumbrar o personagem, General acaba possuído pela criação do diretor de À Meia-noite Levarei Sua Alma (1964). A trama, de autoria do próprio Biscaia, lembra muito a de O Ritual dos Sádicos (1970), filme que torna Zé do Caixão uma entidade demoníaca e não mais um coveiro aristocrático que provoca delírios nas pessoas.
Durante a peça, o personagem de Colombo vive uma experiência como Gregor Samsa em A Metamorfose, de Kafka. A diferença é que, ao invés de virar uma barata, o protagonista ganha longas unhas e passa a torturar mulheres. O resultado da narrativa é cômico, crítico e perturbador. Especialmente diante da trajetória de Mojica, que se tornou refém da própria criação nas últimas décadas.
Audiovisual
Comum em outros espetáculos da Vigor Mortis, as projeções audiovisuais ganham tons de metalinguagem em À Meia-noite Levarei Teu Cadáver. A tela transparente que separa o público de Colombo é o elo do cinema com o palco. Os atores que fazem breves participações gravadas atuam como em uma "fita de terror", habilmente conduzida por Biscaia.
Na estreia, que ocorreu no dia 25 de abril, o próprio Mojica estava na plateia. Isso intensificou a proximidade da obra com a realidade. Ao fim da peça, o público teve oportunidade de ouvi-lo, empolgado, elogiar a montagem que o coloca, merecidamente, no panteão de grandes diretores do horror.
O auditório escuro e a música de filme de terror ao fundo no evento secreto promovido pela Vigor Mortis na noite da última quarta-feira, no auditório do campus Juvevê da Universidade Federal do Paraná (UFPR), deu o tom do que o público convidado, que não sabia do que se tratava, veria. Logo depois de uma breve espera, o mistério foi quebrado: o diretor Paulo Biscaia Filho exibiu, pela primeira vez, o novo longa-metragem da companhia, Nervo Craniano Zero, que abriu, dois dias depois, o 6.º Festival Internacional de Cinema Fantástico Porto Alegre (Fantaspoa).
Rodado em Curitiba e viabilizado pelo Fundo Municipal de Cultura, com patrocinadores locais e distribuição da Moro Filmes, Nervo Craniano Zero é uma adaptação da peça homônima (de 2009), e o segundo longa da companhia (o anterior foi Morgue Story Sangue, Baiacu e Quadrinhos). Rodado apenas e intensamente durante duas semanas, a produção de Biscaia faz referências a filmes de horror de John Carpenter e David Cronenberg, e tem uma forte vertente cômica, principalmente por conta da excelente atuação da atriz e cantora (vocalista do fenômeno musical A Banda Mais Bonita da Cidade), Uyara Torrente, que rouba a cena no filme.
Interpretando Cristi, uma menina que vem do interior sonhando com fama e sucesso, a personagem de Uyara acaba sendo cobaia de um plano inescrupuloso da escritora de sucesso Bruna Bloch (Guenia Lemos). Para evitar sair da lista dos mais vendidos, Bruna usa Cristi para a implantação de um chip indutor de descargas de dopamina que, quando colocado no cérebro humano, gera surtos de inspiração. A invenção é do Dr. Bartholomeu Bava (Leandro Daniel Colombo, fiel parceiro da companhia e também em ótima interpretação), que perdeu sua licença médica após um acidente nas pesquisas para a criação do aparelho. Cristi então acaba virando uma "escrava" de Bruna, e escreve livros compulsivamente.
Tecnicamente bem resolvido, o maior mérito de Nervo Craniano Zero é ser, de fato, imprevisível. Diferentemente da grande maioria das produções atuais, é difícil saber qual será o desfecho da história que, merecidamente, beneficia a pobre Cristi. O filme também acertou na maioria das cenas de flashback dos personagens e colocou ainda mais humor ao trazer, por exemplo, o estereótipo do crítico literário irritante, que analisa uma das obras de Bruna. Nas interpretações, o tom teatral ainda é muito presente na tela e o roteiro, apesar de original, é menos acertado do que o do longa anterior.
Distribuição
Antes da exibição, Paulo Biscaia Filho contou que Nervo Craniano Zero terá um sistema de distribuição diferente do convencional. "Não quero ficar refém de um circuito exibidor que só liga para os grandes filmes", disse. Biscaia destacou que a estratégia será realizar ocupações de espaço com o filme ao longo do ano, a exemplo do que foi feito na UFPR. A produção também será exibida em um festival no estado do Kentucky (EUA).
GGG
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