A atriz Marília Pêra respondia com um belo sorriso quando ouvia falar de seu perfeccionismo. “Sou apenas dedicada”, dizia, com um ar maroto, tentando minimizar o tremendo esforço que utilizava para compor qualquer papel, especialmente em musicais, gênero a que se dedicou com mais afinco nos últimos anos.
Estudiosa do canto lírico e também da tonalidade dedicada exclusivamente ao musical, o chamado belt, Marília, além do cuidado em seguir os registros das partituras, concentrava-se na memorização das letras. “Se o compositor pensou em determinada nota, por que justamente eu deveria mudá-la?”, dizia ela, para justificar a fidelidade e o empenho.
Isso impressionava os colegas. Miguel Falabella, fiel companheiro de palco e televisão nos últimos anos, sempre ressaltou a forma com que a atriz se entregava a qualquer tipo de papel. “Marília nos obrigava a um empenho além do normal, ninguém conseguia vacilar, seja na nota, seja no passo coreográfico, ao perceber o empenho de Marília. Um dos poucos exemplos de uma atriz completa que ainda temos neste país”, comentava.
Por conta disso, Marília conseguia também, com a simples mudança de detalhes, como figurino, criar personagens muito distintos. Em 2003, por exemplo, uma série de diferentes penteados identificava Marília. Com os cabelos curtos, ela subia ao palco para o espetáculo “Marília Pêra Canta Ary Barroso”, que voltava em cartaz em São Paulo. Com uma longa peruca cacheada, ela viveu também o personagem de Madame Clessy, na versão cinematográfica que Jofre Rodrigues prepara da peça “Vestido de Noiva”, escrita pelo pai, Nelson Rodrigues. E, nos raros momentos de folga, ela já se preparava para cortar as madeixas, em um penteado rente à nuca para assumir a mitológica figura de Coco Channel na peça “Mademoiselle Chanel”, escrita por Maria Adelaide Amaral sobre a mulher que, ao ditar novos rumos da moda feminina, também apontou uma conduta revolucionária para as mulheres. “São personagens muito fortes e maravilhosos, que exigem um grande trabalho de preparação e concentração”, comentava.
Para viver Chanel, Marília recuperou sua intensa pesquisa, semelhante ao que fizera para viver outra diva, Maria Callas, no espetáculo “Master Class”. Na criação de Chanel, Marília fez diversas pesquisas - leu biografias e artigos, observou dezenas de fotos e acompanhou atentamente as poucas imagens em movimento que restaram da estilista. “Chanel era uma mulher misteriosa, pois oferecia várias faces”, contava a atriz. “Apesar de sua fala agressiva, ela inventou um jeito delicado de andar.” Marília preocupou-se com a coreografia do personagem, representando com elegância gestos comuns de Chanel como colocar uma das mãos no bolso (ou no cós da saia), enquanto a outra segura um cigarro. “Ela é uma atriz que alcança a alma do personagem”, observava o diretor Jorge Takla, com quem Marília trabalhou em outras produções, como o musical “Vitor ou Vitória?”.
A pesquisa era uma atividade infinita, para ela. “O teatro é como um quadro eternamente inacabado, em que novos detalhes são acrescentados”, justificava Marília, que contava ter um ritual: sempre chegava cedo ao teatro, fazia exercícios vocais e corporais e apenas depois de soar o primeiro toque é que vestia a roupa de seu personagem. “Tenho muito respeito pelo figurino”, confessava.
O profissionalismo se estendia para as produções em que Marília Pêra dirigia. Foram vários espetáculos, mas certamente o mais duradouro foi “O Mistério de Irma Vap”, que estreou em 1986, com Marco Nanini e Ney Latorraca, e que ficou 11 anos em cartaz, fato registrado no livro de recordes. Uma montagem “de quintal” - assim ela se recordava da primeira encenação, uma experiência ao mesmo tempo excitante como improvisada. “Utilizamos roupas de outras peças, perucas emprestadas, uns trocados aqui, outros ali... Foi assim: uma montagem ‘jovem’.”
Havia uma alucinada troca de roupas - 56 ao todo, nenhuma ultrapassava os 30 segundos para não quebrar o ritmo. Também estavam lá as improvisações, as brincadeiras entre os atores, o jogo com a plateia. A veia cômica de Marília Pêra, uma das maiores comediantes da TV e do palco, revelou-se essencial para a conquista do bom resultado.
Outro momento curioso que mostrava o virtuosismo da atriz aconteceu no musical “Gloriosa!”, dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho e que estreou em 2008. Ali, ela interpretou Florence Foster Jenkings, soprano americana que se tornou famosa por sua completa falta de ritmo, tom e todas habilidades do canto. Em outras palavras, a pior cantora de ópera do mundo.
“Ela não conseguia acertar nenhuma nota, o que tornava seus concertos um verdadeiro show de humor”, contava Marília. “Assim, seus concertos se tornaram concorridíssimos e as pessoas gargalhavam durante as apresentações.” Afinadíssima, Marília era obrigada a descobrir primeiro como era cantar certo, para depois desaprender a cantar. “Espero também ser vaiada”, brincava ela, o que, de fato, jamais aconteceu.
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