O livro “Na Boca do Bode” mostra a alta temperatura cultural da geração de Londrina na virada dos anos 1960 para os 70. O que tinha na água de Londrina naquela época para tanta agitação criativa?
Eu procurei abordar no livro, para além dos personagens principais – Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção – e do show coletivo (Na BOCA do BODE) que os reuniu, exatamente isso: a efervescência de Londrina também pela ótica de protagonistas da cultura da cidade que não os dois, gente que depois iria desenvolver trabalhos importantes dentro e fora do Paraná: Mirian Paglia Costa, Nitis Jacon, Domingos Pellegrini (que “dirigiu” o show), Carlos Verçosa, Robinson Borba, Denise Assunção, Neuza Pinheiro, Paulo Barnabé, entre tantos. A “água”... Segundo o Marinósio Filho, baiano radicado em Londrina e autor de um hino carnavalesco atemporal, “Cachaça não é água não”. Apesar da brincadeira, acho indispensável frisar que Marinósio representa, de certa forma, a variedade de tipos humanos envolvidos no processo de colonização norte paranaense. E isso foi decisivo. O lastro cosmopolita da região se deve não apenas ao boom cafeeiro dos anos 1950, mas a ingleses, japoneses, brasileiros de várias cidades e regiões e tantos outros cidadãos do mundo que buscavam novas perspectivas. Recentemente o cineasta Rodrigo Grota abordou de maneira singular, em Booker Pittman, o clarinetista e saxofonista norte-americano que viveu em Londrina e tocou com Louis Armstrong, Pixinguinha, Waltel Branco. Porém, foi a geração de Arrigo e Itamar que acabou assumindo o desafio de fazer música autoral no início dos anos 1970 – o que se efetivou na década seguinte. E isso não é pouco, convenhamos. A cidade tinha menos de 40 anos à época.
Vanguarda paulista tem pé-vermelho
Livro mostra como a cena cultural de Londrina na década de 1970 antecipou a revolução musical que aconteceria nos anos seguintes
Leia a matéria completaO Na Boca do Bode surgiu na esteira da “era dos festivais”. Como surgiu a ideia do show e qual a diferença dele em relação aos muitos que ocorreram no período? Por que ele marcou tanto?
Os festivais universitários, de forma geral, diferentemente dos festivais televisivos, que sempre estiveram associados ao mercado da publicidade e mobilizavam multidões, foram fundamentais para potencializar o veio criativo de uma geração constrangida social e artisticamente pela ditadura militar. Em Londrina, na brecha conseguida junto às autoridades para a realização de jogos entre faculdades, surgiram peças de teatro, apresentações musicais, artes plásticas e literatura. Somado ao lastro cosmopolita citado antes, conformou-se uma cena cultural. Aliás, a simbologia desse período não deve ser perdida. Afinal, enfrentar restrições políticas que não se limitaram à proibição de obras artísticas, chegando mesmo à tortura e à morte de muitos, apenas com linguagens criativas – metáforas “vencendo os canhões” – impunha um desafio imenso: aceitar as condições impostas, omitir-se ou burlar as regras do jogo? O risco era palpável, mas não houve recuo. De acordo com Robinson Borba, Na BOCA do BODE “dizia sobre o momento que estávamos vivendo com a repressão. Parecia que ia ficar pior...” A letra de “Clara Crocodilo”, de Arrigo Barnabé – a primeira versão, não a gravada posteriormente em 1980 – enviada à censura, por exemplo (eu reproduzo o documento no livro, com o carimbo da censura), foi reescrita por Domingos Pellegrini. Porém, na apresentação, a forma original foi mantida, com o personagem da música, uma espécie de anti-herói, ambientado na atmosfera claustrofóbica reinante. Segundo Pellegrini, um show coletivo era a maneira de suplantar o alcance de mostras competitivas e partir para o colaboracionismo – o grupo que organizou o Na BOCA do BODE passou a utilizar esse nome como designação, o intuito era facilitar a percepção dos trabalhos dos integrantes e ampliar o alcance de suas criações. A diferença principal foi a ousadia envolvida, com nítidas propostas de ruptura em relação aos formatos tradicionais do cancioneiro – ao menos quatro dos integrantes do show lançariam álbuns inovadores na década de 1980: Arrigo (Clara Crocodilo); Itamar (Beleléu, Leléu, Eu); Robinson Borba (Rabo de Peixe); e Paulo Barnabé (Corredor Polonês, da Patife Band). Foi marcante pela recepção das obras citadas, e também por ter reforçado a identidade “vanguardista” de tais compositores, preferindo a invenção à diluição.
Daquela cena emergiram dois grandes artistas de dimensão nacional – Itamar e Arrigo. Foi este mesmo o grande legado?
O legado de Londrina para a produção musical brasileira é discutível mais pela limitação de repertório cultural do brasileiro do que pelos méritos estéticos de ambos ou mesmo de outros nomes de sua geração. Lembremos que de lá para cá a cidade tornou-se potência do agronegócio, e o custo cultural dessa nova realidade é imenso. Ainda hoje entendo que o potencial de público das obras de Itamar e Arrigo não foi alcançado.
No livro você destaca o papel das mulheres na cena cultural londrinense de então. Aquele momento representou uma antecipação da tendência de afirmação da mulher como hoje vivemos?
A questão é complexa e merece maior aprofundamento. O protagonismo feminino no contexto dos festivais universitários, que de alguma forma está ligado ao papel crucial das mulheres na resistência à ditadura, está também associado à sua relevância no desenvolvimento artístico londrinense, por meio de algumas instituições, como o Conservatório Musical e a Sociedade de Cultura Artística. O FILO (Festival Internacional de Teatro de Londrina), por exemplo, deve sua importância e longevidade ao trabalho da incansável Nitis Jacon, que ininterruptamente desde 1968 promove as artes cênicas na cidade. Mas é importante salientar que esse processo está aquém do almejado para uma sociedade plural, diversa e verdadeiramente democrática. Oxalá a tendência percebida ali continue se impondo historicamente daqui por diante.
Deixe sua opinião