Tachada de mal do século, a depressão é responsável por retirar do mercado de trabalho milhares de profissionais todos os anos. No ano passado, 75,3 mil trabalhadores foram afastados em razão do mal, com direito a recebimento de auxílio-doença em casos episódicos ou recorrentes.
Eles representaram 37,8% de todas as licenças em 2016 motivadas por transtornos mentais e comportamentais, que incluem não só a depressão, como estresse, ansiedade, transtornos bipolares, esquizofrenia e transtornos mentais relacionados ao consumo de álcool e cocaína.
No ano passado, mais de 199 mil pessoas se ausentaram do mercado e receberam benefícios relacionados a estas enfermidades, o que supera o total registrado em 2015, de 170,8 mil.
Entre 2009 e 2015 (únicos dados disponíveis), quase 97 mil pessoas foram aposentadas por invalidez em razão de transtornos mentais e comportamentais, com destaque para depressão, distúrbios de ansiedade e estresse pós-traumático. Ao todo, esses novos benefícios representam, hoje, uma conta de R$ 113,3 milhões anuais aos cofres públicos.
Capacidades afetadas
Para os especialistas, a situação evidencia a necessidade de colocar esse tipo de transtorno no topo da lista de preocupações para políticas públicas e de empresas. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, até 2020, a depressão será a doença mais incapacitante do mundo. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) estima que entre 20% e 25% da população tiveram, têm ou terão um quadro de depressão em algum momento da vida.
Para Leonardo Rolim, especialista em Previdência, as políticas públicas falham pois não se preocupam em reintegrar os profissionais no ambiente de trabalho. Segundo ele, apenas 5% dos trabalhadores afastados são reabilitados no emprego.
“Os números são muito grandes, e há uma falha na reabilitação. Mesmo quando volta, o trabalhador demora muito. O Estado gastaria menos reintegrando esse trabalhador do que pagando benefícios por muitos anos.”
Segundo Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, a capacidade de trabalho e todas as outras funções do corpo ficam abaixo do normal em uma pessoa deprimida:
“Todas as funções da pessoa com depressão estão para baixo: a capacidade de trabalho, insegurança, falta de vaidade, a pessoa se sente feia, se sente péssima, sem condições de trabalho, perde as forças, a vontade. Fica sem concentração por causa das alterações do sono. Como trabalhar oito horas após noites seguidas de insônia? Como trabalhar com sonolência excessiva?”
Acidentes de trabalho
Parte dos problemas que chegam ao INSS foi desencadeado por fatores relacionados ao próprio ambiente de trabalho. De todo o pessoal afastado no ano passado por transtornos de comportamento em geral, ao menos 10,6 mil foram considerados acidentes de trabalho, ou seja, tiveram o ambiente profissional como um dos agentes desencadeadores da doença.
Para casos específicos de depressão, episódicos ou recorrentes, foram 3,4 mil auxílios por acidente de trabalho. Os números, porém, podem ser bem maiores. Parte dos especialistas destaca que há risco de subnotificação, diante da dificuldade em comprovar o papel do ambiente de trabalho na ocorrência de episódios depressivos. Mesmo assim, há profissões que são conhecidas por terem mais afastamentos e aposentadorias ligadas a transtornos dessa natureza. É o caso do mercado financeiro, dos controladores de voo, dos profissionais da área de segurança, juízes, jornalistas e médicos.
Na avaliação de Rolim, em casos de acidente de trabalho, deveria haver algum tipo de ação para que o empregador compense o INSS, já que o ambiente foi considerado um fator que desencadeou a doença.
Por transtornos em decorrência de uso de psicoativos, sobretudo álcool e cocaína, foram 240 afastamentos considerados acidente de trabalho em 2016. Outros 34,2 mil receberam o auxílio previdenciário, quando não há conexão com o ambiente de trabalho. Procurado para falar sobre o assunto, o Ministério da Previdência não comentou.
Uma das diretoras da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), Rosylane Rocha explica que a depressão é uma doença, com um componente genético, que pode ser desencadeada por uma série de fatores, como o contexto social ou um determinado evento de vida da pessoa. Uma vez que exista a predisposição para a doença, uma carga exaustiva e recorrente de trabalho, um ambiente muito estressante ou uma situação de estresse pós traumático, por exemplo, podem fazer com que o trabalho seja o fator responsável por desencadear o problema. É nesses casos em que os benefícios são considerados acidente de trabalho.
O termo ‘estresse’ vem da física, para você medir o estresse de uma ponte, por exemplo. Se passar mais peso do que o previsto, a ponte estressa e rompe. Com o ser humano é a mesma coisa. Se ele passa a trabalhar 12h por dia, por exemplo, vai se estressar e romper, quebrar.
“Esses casos ocorrem quando o médico entende que há uma contribuição relevante do ambiente de emprego para o quadro, a ponto de que, sem isso, a depressão não eclodiria”, explica.
Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva, o trabalho pode, de fato, ter impacto sobre a saúde do trabalhador.
“O termo ‘estresse’ vem da física, para você medir o estresse de uma ponte, por exemplo. Se passar mais peso do que o previsto, a ponte estressa e rompe. Com o ser humano é a mesma coisa. Se ele passa a trabalhar 12h por dia, por exemplo, vai se estressar e romper, quebrar.”
Crise econômica aumenta pressão sobre trabalhadores e deve fazer atestados crescerem
Com o aumento do desemprego e a crise econômica, o número de atestados médicos e afastamentos por depressão e crises de ansiedade tende a crescer em médio prazo. Essa é a avaliação da diretora da Associação Nacional de Medicina do Trabalho, Rosylane Rocha.
Preocupado em manter a fonte de renda em um mercado que não tem contratado na recessão, o trabalhador acaba aguentando mais pressão calado, o que aumenta as chances de saturação no futuro. Além disso, com as demissões nos últimos anos, muitos empregados tiveram que acumular funções e estão não só sujeitos à maior pressão como viram a jornada aumentar muito.
Nos últimos dois anos, os números de afastamentos arrefeceram em relação ao apresentado entre 2012 e 2014. Em 2014 eram 83,2 mil, por exemplo. Em 2015, sobretudo por causa da greve dos peritos do INSS e do aumento do desemprego, o número caiu para 63,8 mil. Em 2016, voltou a subir para 75,3 mil.
“A crise vai aumentar isso. Contas penduradas, medo de desemprego, isso afeta o equilíbrio emocional. O trabalhador não conversa, não reclama”, diz Rosylane.
Luz amarela
Jornada exaustiva, ambiente insalubre, falta de pausas, divisão injusta de tarefas, não recomposição de horas trabalhadas a mais. Todos esses fatores são potenciais desencadeadores de transtornos mentais e comportamentais no trabalho. Apesar de quase 200 mil auxílios doença terem chegado até as mãos dos empregadores no ano passado por esse tipo de doença (75 mil deles por depressão), as empresas brasileiras não sabem como lidar quando um trabalhador diz estar deprimido.
Para Rosylane, a empresa deveria acender uma luz amarela no momento em que o primeiro atestado do tipo chega. O ideal, diz, é investigar se algum motivo interno, do ambiente de trabalho, pode ter causado a situação, uma forma de evitar que aquele quadro piore e, ainda, que outros funcionários passem pela mesma situação.
“O empregador, o médico do trabalho da empresa tem que investigar se o trabalhador está sendo perseguido, se a jornada está exagerada, se o trabalhador está sendo acompanhado por um psiquiatra.”
Tratamento
O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, ressalta que a depressão tem tratamento, o que pode permitir um retorno saudável ao emprego. O grande problema, segundo Silva, é que muitas vezes a pessoa deprimida não busca a ajuda correta. O presidente da ABP reforça que a depressão tem que ser tratada com os medicamentos adequados, indicados por médicos especialistas no assunto.
O tratamento inclui um time: psiquiatras, psicólogos e muitas vezes a ajuda de grupos de apoio. Esses grupos auxiliam as pessoas a não se sentirem isoladas com o problema, por meio da troca de experiências. Segundo ele, de cada cem pacientes com depressão, menos de 10 chega ao psiquiatra.
“Muitas vezes a depressão acaba sendo subdiagnosticada e tratada como outra coisa. As pessoas não procuram um psiquiatra por puro preconceito. Com um tratamento inadequado, com o médico errado, a doença pode se tornar crônica. Aí a pessoa não consegue mais voltar a trabalhar, não consegue mais produzir permanentemente”, explicou Silva.
Na via pública, a principal opção são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Hoje são 2.455 deles. Nesses locais, “o usuário recebe assistência multiprofissional e cuidado terapêutico conforme o quadro de saúde”, com atendimentos noturnos, inclusive, segundo o Ministério da Saúde. Há ainda as Unidades de Acolhimento (UA), que funcionam 24 horas por dia oferecendo suporte aos CAPS para ampliação de cuidados de saúde a pessoas com necessidades decorrentes de uso de álcool e outras drogas.
Para o presidente da ABP, mesmo com os numerosos casos de depressão e o impacto no mercado de trabalho, o tratamento na rede pública ainda tem falhas.
“Os CAPS são um lugar para abordagens psicossociais, a maioria não tem psiquiatras todos os dias para atender toda a demanda. O ideal seria um sistema ambulatorial, como para qualquer outra doença: você marca uma consulta, vai para casa e volta para um retorno. Há pouca ênfase na prevenção de recaídas. Não temos campanhas de prevenção para trabalhar o estigma em torno do assunto, a incompreensão.”
O Ministério da Saúde esclareceu que tem uma política nacional de saúde mental que é referência internacional. Entre todos os serviços prestados (que incluem CAPS, UAs, leitos, programas de prevenção, cursos de educação permanente para profissionais de saúde), o gasto federal em 2015 foi de R$ 1,3 bilhão.