No último sábado (5), um manifesto de James Damore, então engenheiro de software do Google, vazou na imprensa. Nele, o autor defende que diferenças biológicas explicam a escassez de mulheres em posições de liderança e na área da tecnologia. Dois dias depois, o Google anunciou a demissão de Damore, decisão que esquentou ainda mais os debates já acalorados acerca do material e das políticas de diversidade da empresa.
A revelação do manifesto (na íntegra, em inglês) e a demissão do funcionário ainda repercutem. Julian Assange, fundador do Wikileaks, ofereceu um emprego ao engenheiro. Simpatizantes de extrema direita criaram uma campanha de arrecadação de fundos para financiar uma vindoura disputa legal. Nas redes sociais e em fóruns de discussão, muita gritaria de gente condenando e elogiando a ação do Google.
Antes de entrar no mérito, um bom exercício a ser feito é colocar a situação em termos práticos. O manifesto foi, nesse sentido, uma declaração de que suas colegas de trabalho são geneticamente incapazes de desempenhar as tarefas que lhe são atribuídas — programação e cargos de liderança — com a mesma competência de um homem. Tenha isso sempre em mente.
Segundo o texto, as supostas diferenças entre homens e mulheres têm origem na “natureza”. Diz ele, no texto, que elas são mais abertas aos sentimentos e à estética, enquanto os homens são às ideias. Que mulheres são mais empáticas e homens, mais sistemáticos.
Arremessar pedras uns nos outros e caçar animais selvagens na savana eram atitudes naturais no tempo dos homens das cavernas, alguns milênios atrás. É a ciência desses instintos e o controle deles que nos tornam civilizados, como escreveu Freud no início do século XX em seu O Mal-Estar na Civilização.
Não se questiona que diferenças entre gêneros existam, mas sim se elas são determinantes na disparidade que há entre homens e mulheres que ocupam cargos nas carreiras citadas. O Google acredita que não, por isso fomenta políticas de diversidade. Por melhor intencionado que Damore tenha sido na elaboração do seu manifesto, há falhas fundamentais na sua argumentação.
Mulheres na tecnologia
A incompatibilidade entre o que Damore pensa e o que o Google defende seria suficiente para justificar a demissão. Faço um rápido desvio, porém, para abordar o mérito. Porque me soa temerário e historicamente impreciso dizer que mulheres são inaptas para as posições ali referidas.
O engenheiro diz, em seu manifesto, que as mulheres são mais ansiosas e menos tolerantes a situações de estresse, o que explicaria a ausência delas nos cargos de liderança. Esquece-se de Safra Catz (Oracle), Meg Whitman (HP), Virginia Rometty (IBM) e Susan Wojcicki (YouTube), todas CEOs de grandes multinacionais da tecnologia. Fosse brasileiro, certamente ignoraria Cristina Junqueira (NuBank) e Paula Bellizia (Microsoft). E de outras que exercem cargos de liderança em empresas de tecnologia apesar da misoginia que intoxica esse meio.
Damore também ignora fatos históricos que contradizem seu argumento de que programação é natural ao homem. Que o primeiro algoritmo computacional da história foi desenvolvido uma mulher, Ada Lovelace, e que os primeiros computadores eletrônicos, como o ENIAC, eram programados por mulheres. Essas histórias estão bem documentadas no livro Os Inovadores, de Walter Isaacson, tido como a biografia da computação, uma área do conhecimento que tem vários pais — e mães.
Em 1967, a revista Cosmopolitan publicou uma matéria ressaltando que a programação era um “novo campo profissional para as mulheres”. Nathan Ensmenger, professor na Universidade de Indiana e autor do livro The Computer Boys Take Over: Computers, Programmers, and the Politics of Technical Expertise (sem tradução no Brasil), escreve que em algum ponto dos anos 1980 essa régua de valores mudou e, com ela, toda a estrutura hierárquica do campo da computação a fim de tornar a programação uma atividade inerentemente masculina e antissocial. Não é à toa, segundo Ensmenger, que o estereótipo do programador se autoperpetua como o do “nerd”: um homem sem habilidades sociais, sem sentimentos, extremamente focado e analítico.
Tendência no Vale
Em resposta ao manifesto, Susan Wojcicki, CEO do YouTube, publicou um texto na Fortune. Nele, a executiva lembra o quanto sua capacidade profissional já foi questionada pelo simples fato de ser mulher. Destaca que, embora o “gap” de gêneros esteja diminuindo em outras áreas relacionadas às ciências, a da computação segue como uma exceção.
Ela questiona: “por exemplo, e se trocássemos a palavra ‘mulher’ no memorando por outro grupo? E se o memorando dissesse que diferenças biológicas entre funcionários negros, hispânicos ou LGBTQ explicassem sua sub-representação em cargos tecnológicos e de liderança?” É um questionamento válido. Segundo o próprio Google, funcionários negros ocupam apenas 1% dos cargos técnicos.
O Google faz parte de uma tendência crescente no Vale do Silício no sentido de aumentar a diversidade dos quadros de funcionários. A empresa tem apenas 20% de mulheres em áreas técnicas. Segundo a consultoria Fenwick & West LLP, em 2015 apenas 11% dos cargos executivos nas empresas do Vale do Silício era ocupado por mulheres.
Se existe um interesse genuíno do Google em reparar, ou pelo menos dar chances às mulheres para provarem que as estatísticas não são resultado de um suposto desinteresse ou insuficiência biológica, ótimo. A empresa está comprometida com isso, alinhada a pautas progressistas que questionam presunções baseadas em traços culturais herdados de séculos de machismo. O contrário, já estamos cansados de ver — é como sempre foi desde a invenção do capitalismo.
Negócios e liberdade de expressão
Mais que uma empresa, o Google é um ente político. Seu tamanho faz com que a influência que ele exerce transcenda os produtos oferecidos ao público. A cultura corporativa pesa bastante e é um fator a ser levado em conta para os fins da empresa. Em termos bem simples, tudo isso pode custar dinheiro.
A diversidade defendida pelo Google é um “asset” que faz a diferença nas contas da empresa. E um particularmente delicado: a empresa enfrenta um processo movido pelo Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, que a acusa de pagar salários menores a funcionárias mulheres.
O Google agiu rápido e demitiu Damore dois dias depois que a história vazou na imprensa. Sundar Pichai, CEO do Google, encurtou as férias para cuidar pessoalmente da questão. Danielle Brown, vice-presidente de diversidade, integração e governança do Google, enviou uma carta aos funcionários do Google apontando as incongruências entre o manifesto de Damore e os valores defendidos pela empresa. Valores esse que o engenheiro conhecia (ou deveria conhecer).
O que aconteceria se a questão fosse ignorada? Provavelmente algo semelhante à espiral de notícias infelizes e descobertas decepcionantes que a Uber enfrenta desde o final do ano passado. Entre os diversos escândalos revelados, vimos denúncias de assédio que foram varridas para baixo do tapete e um trabalho sistemático da área de recursos humanos a fim de desacreditar as mulheres que denunciaram tais abusos. O acúmulo deles custou o cargo do CEO e cofundador da Uber, Travis Kalanick, e uma mancha na reputação da empresa.
O papel da mulher nas empresas de tecnologia importa na mesma medida em que é delicado. Dados e relatos, alguns dos mais fortes publicados em matéria recente do New York Times, dão uma ideia do cenário hostil a que as interessadas na área mais lucrativa do planeta atualmente têm que enfrentar. A sugestão de que há uma discriminação contra o perfil dominante desses lugares, como sugere Damore em seu manifesto, é descabida. É uma “vitimização percebida” que ganha corpo quando se dão os primeiros passos rumo à equidade, ou uma tentativa de equilíbrio.
Por fim, não há que se falar sobre cerceamento à liberdade de expressão, argumento muito levantado nos últimos dias na defesa do manifesto e seu autor. “Ditadura” e “censura”, alguns chegaram a dizer, banalizando termos tão caros. Ele não teve a sua liberdade de se manifestar tolhida. Ele se manifestou e continua a fazê-lo. Estamos aqui, inclusive, debatendo o que ele escreveu.
Acontece que palavras têm consequências e as enfrentadas por James Damore estão dentro do que se esperaria de uma empresa privada em um país democrático.