É como se você comprasse um carro, mas a concessionária invadisse sua garagem no meio da noite para pegá-lo de volta. Em 2009, vários usuários do Kindle, o leitor de e-books da Amazon, notaram que pelo menos dois livros haviam sido apagados de seus aparelhos. Mais tarde, a empresa confirmou que havia deletado as obras, de forma remota, usando como justificativa o fato de elas terem sido inseridas na plataforma sem respeitar licenças editoriais. Claro, é chato ter sua leitura interrompida na página 76. Mas há algo pior. “Nunca imaginei que a Amazon tivesse o direito, a autoridade e até a capacidade técnica de deletar algo que eu já havia comprado”, disse um dos usuários ao New York Times na época. Quer uma dose de ironia? Um dos livros apagados era 1984, o clássico de George Orwell sobre um estado controlador que vigia e censura sua população.
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Richard Stallman se diverte ao relembrar a história. É uma pequena vitória do homem e sua filosofia contra o sistema. Com sua barba e madeixas longas, estilo de quem está 24 horas por dia pronto para um show do Grateful Dead, o programador e ativista nova-iorquino de 64 anos não tem Facebook e tampouco smartphone. Pede para que não publiquem suas fotos em redes sociais. Também não quer saber de Uber, Netflix ou Spotify. O que parece uma vida um tanto entediante o levou ao status de guru mais improvável da tecnologia. Stallman é o pai do movimento “Free Software” — “Software Livre”, em português —, que luta desde os anos 1980 contra o poder quase invisível das empresas de tecnologia, capazes de usar seus códigos [o conjunto de instruções que fazem um programa funcionar] para espionar, restringir a liberdade e roubar dados de seus clientes.
Para os seguidores do “Software Livre”, qualquer programa de computador – do Microsoft Word ao Google Chrome, deveria ser aberto e permitir a qualquer um copiá-lo e modificá-lo. Se o usuário não pode fazer isso, não é ele quem manda em seu computador. “É o computador quem o controla”, decreta Stallman.
O ativista parece a um passo da paranoia, mas sabe do que fala. Pense em seu computador de casa: provavelmente usa um sistema operacional Windows (Microsoft) ou macOS (Apple). “O problema é que ninguém sabe como são seus códigos além dos fabricantes”, explica. E, honestamente, Microsoft e Apple estão mais interessados em vender o bolo que passar sua receita. “Não dá para saber se esse software tem uma ‘porta traseira’ a não ser que você veja seu código em funcionamento. Uma ‘porta traseira’ é um comando enviado por alguém que diz o que o programa deve fazer, sem pedir a permissão do usuário. Só vai lá e faz”. Como apagar um livro de George Orwell de um leitor digital.
Se assistir a uma palestra de Stallman inspira — como a realizada em junho na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba —, não é exatamente pela good vibe. O líder do software livre é pessimista crônico. “O proprietário de um programa sabe do seu poder. E o poder corrompe. Ele sofre a tentação de querer tirar vantagens desse poder. Pode criar funções maliciosas e escondê-las em seus softwares”, aponta. É o que, para ele, tem ocorrido. “Flash Player, Windows, MacOS, Android… Todos eles espionam seus usuários. Vários aplicativos de smartphones também vigiam as pessoas. Um simples app de lanterna para o celular, que precisaria apenas acender a luz do flash, pede acessos a funcionalidades só para roubar dados. As tevês inteligentes espionam seus usuários e dizem ao fabricante o que eles estão assistindo. Se um produto leva “inteligente” no nome, sem dúvida é malicioso”, ironiza.
É uma lista negra tão extensa quanto o acervo de apps da App Store ou Google Play.
O sonho de Stalin
Os smartphones são um campo fértil para o lado negro da tecnologia. “Um estudo recente feito com milhares de aplicativos para Android mostrou que 60% dos pagos tinham algum instrumento de rastreamento do usuário. Dos grandes apps, 90% espionavam”, aponta o programador. Não é o único problema. “A Apple tem um sistema que permite apagar remotamente aplicativos de seus telefones. Além disso, a empresa nega ao usuário o poder de instalar o que quiser. Tem que ser aplicações aprovadas pela companhia e disponíveis na sua loja oficial. Quando algum dono de iPhone consegue driblar estas restrições, eles dão o nome á ação de jailbreak [fuga da prisão]. Ou seja, admitem que seus usuários estão presos”, critica.
“Com o [sistema] Android é pior. O Google [seu proprietário] pode instalar um app à força em seu aparelho”, descreve.
O que você vê como um sonho de consumo, Stallman enxerga como pegadinha. “Os telefones portáteis podem ser usados como aparelhos de escuta. Podem ouvir suas conversas o tempo todo e transmitir tudo a alguém. E você nem mesmo precisa falar diretamente no microfone. A sua única saída é o botão que desliga. Mas, advinha? Os telefones não têm um botão que desliga. Ele só finge que desliga, mas continua funcionando, escutando e transmitindo. O único jeito de fazê-lo parar é removendo todas as suas baterias. E, novamente, é bem possível que seu aparelho tenha baterias que não podem ser removidas”, diz.
“Um aparelho que diz onde o dono está pela geolocalização, que pode escutar e transmitir suas conversas... Isso seria o sonho de [Joseph] Stalin [líder da União Soviética conhecido por governar com mão-de-ferro]. Ele mandaria todo mundo na União Soviética ter um aparelho desses se a tecnologia existisse na época. Só que agora ela existe e você usa. E sem que ninguém o ameace de fuzilamento”, ironiza. Não precisa dizer que o programador está entre os 5% dos norte-americanos que não têm um aparelho celular. E, pelo visto, não pretende saltar para o barco dos outros 95%. “Não vale a privacidade”, diz.
Livre como um pássaro...
Parece coisa recente, mas há mais de 30 anos Stallman lidera a corrente contrária aos softwares privados, como chama. Foi quando seu trabalho começou a sair do campo das ideias. Hoje é muito mais prático. O programador ajudou a desenvolver o sistema operacional GNU/Linux, um programa de computador que divulga seu código. Assim, qualquer um, com conhecimento em programação, pode saber como ele funciona, modificá-lo, copiá-lo e repassá-lo. É o verdadeiro software livre. “Há quatro liberdades básicas que precisam ser seguidas para que um programa seja considerado free software, sem ameaça de malefícios. O usuário precisa ter liberdade de executar o software para qualquer uso; de estudar o funcionamento do programa e de adaptá-lo às próprias necessidades; de redistribuir cópias do software [gratuitamente ou vendendo]; e de melhorar o programa e tornar essas modificações públicas para que toda a comunidade se beneficie”, aponta.
Stallman, porém, sabe que a batalha contra as gigantes é inglória. “Essas companhias ganham muito dinheiro e investem na inércia social. O Skype foi desenvolvido para espionar a conversa de seus usuários. Mas há a pressão social que seus parentes, amigos, conhecidos exercem para que você use. E, se você se entrega, passa a ser instrumento desta pressão. As pessoas se tornam parte do problema ao mesmo tempo em que são vítimas dele”, diz.
Mudar o ciclo é tarefa dura, que deveria estar nas mãos das escolas, na sua visão. “As universidades formam seus alunos para operar determinados softwares e o mercado se obriga a usá-los, já que é o que os graduados aprenderam. Só que, quando você vai à universidade, ela diz que usa esses programas porque é o que o mercado pede. Os dois estão dizendo que não podem mudar. Nesse caso, o papel cabe à universidade por sua missão social”, aponta. “As pessoas deveriam pressionar escolas e governos para só usarem softwares livres, sempre com códigos compartilhados. É uma batalha por justiça e liberdade”, diz. “Até que as pessoas se tornem conscientes nunca vão se rebelar; até se rebelarem, nunca se tornarão conscientes”, escrevia o genial Orwell em “1984”.