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Chile volta a ofertar educação universitária gratuita após décadas. Por quê?

Universidade do Chile: uma das melhores do mundo antes e depois da gratuidade | Divulgação
Universidade do Chile: uma das melhores do mundo antes e depois da gratuidade (Foto: Divulgação)

Desde 2006, o Chile passou a conviver com protestos cada vez maiores de estudantes pedindo uma reformulação do ensino público do país e a volta do ensino superior gratuito, encerrado durante a ditadura de Augusto Pinochet. A pressão deu resultados e, nos últimos anos, o governo chileno aprovou uma série de reformas que culminaram com a aprovação, em janeiro, de uma histórica lei de gratuidade. Até mesmo o novo presidente, o conservador Sebastián Piñera, que se opôs às medidas no passado, parece ter mudado de opinião: “todos mudam sua postura, se não fosse assim seguiríamos nas cavernas”, afirmou a respeito. O que causou a virada no Chile? 

Reformas na ditadura 

Até os anos 80, o Chile possuía um sistema similar ao brasileiro: instituições públicas e gratuitas, como a Universidade do Chile, coexistiam com instituições privadas tradicionais, como a Universidade Católica de Santiago. Tentando reativar uma economia em crise na virada da década, o governo pinochetista passou a implementar cada vez mais reformas liberalizantes em setores antes intocáveis, que passaram a incluir também a educação. Nas escolas, um sistema de vouchers mudaria o modelo de financiamento estatal. No ensino superior, as reformas implementadas em 1981 desmembraram as antigas instituições públicas em várias faculdades independentes, e permitiram ainda a formação de novas universidades privadas, que se proliferaram pelo país. 

Através da implementação de um sistema de vouchers, o estado deixou de financiar diretamente as escolas, passando a subsidiar os próprios alunos. A ideia era submeter as instituições à lógica de mercado: as famílias poderiam escolher livremente onde desejavam matricular seus filhos, e as escolas só receberiam as subvenções de acordo com a quantidade de alunos (e, consequentemente, de portadores de vouchers) presentes, dia a dia, nas aulas. 

“A privatização da educação se justificou com o argumento de que o efeito da competição entre os prestadores permitiria melhorar a qualidade. O que ocorreu foi exatamente o contrário”, argumenta a professora Ingrid Boerr, especializada em planificação educacional, uma das coordenadoras da Secretaria Técnica de Educação Pública no Ministério de Educação do Chile durante o governo Bachelet. Como o valor de cada voucher é fixo, escolas menores, que gastam mais, em média, com cada aluno, passaram a sofrer com a falta de recursos. 

“Segregação” 

Com frequência, o valor só permitia às instituições bancar os custos de pessoal, sem investir em infraestrutura. Nos anos 90, as escolas privadas que participavam do sistema de vouchers puderam cobrar uma mensalidade complementar ao subsídio, mas as públicas seguiam dependendo apenas do valor padronizado “trazido” por cada estudante. “A qualidade foi decaindo paulatinamente, em especial nos setores onde os custos do serviço educativo eram mais altos do que as famílias podiam pagar”, observa Boerr. “Isso gera distintas ‘qualidades’, isto é, educação para pobres, para as classes médias e para os ricos”. 

Essa distinção aparece, por exemplo, em provas internacionais como o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos, na sigla em inglês): segundo o Fórum Chileno pelo Direito à Educação, que reúne organizações não-governamentais dedicadas ao ensino, os indicadores da prova mostram que o país é aquele com maior “segregação pela situação socioeconômica” quando se compara o desempenho de escolas públicas, frequentadas majoritariamente por alunos de baixa renda, e privadas, com estudantes provenientes de famílias de mais recursos. 

“Os estudantes mais pobres têm resultados inferiores a outros de melhor situação econômica não porque tenham menos condições, mas porque provêm de liceus de má qualidade nos quais não alcançam o aprendizado esperado porque ele não é desenvolvido”, assinala Ingrid Boerr. Isso se reflete na própria condição de acesso à universidade, afirma a especialista, pois “dessa forma, eles tampouco alcançam os méritos que se esperam para obter bolsas”. 

Qualidade duvidosa 

A disparidade no acesso às melhores universidades fica evidenciada quando se comparam os resultados na Prova de Seleção Universitária (PSU), exame unificado chileno similar ao Enem, cuja pontuação é considerada pelas instituições no momento da matrícula. Mario Waissbluth, presidente da Fundação Educação 2020, compilou os dados no livro Se Acabó el Recreo: La Desigualdade en la Educación: 43% dos estudantes provenientes de famílias com renda mensal média inferior a 550 dólares obtinham as notas mais baixas da prova (menos de 450 pontos), número que baixava para apenas 4,1% dos estudantes vindos de família com renda superior a 2,5 mil dólares. Quando se consideravam as notas mais altas (acima de 700 pontos), a proporção se invertia: apenas 0,2% dos mais pobres alcançavam o escore, contra 19,3% dos mais ricos. 

Essa desigualdade acabou por aprofundar os mesmos vícios criticados pelos oponentes do ensino superior gratuito: os mais pobres seguiram “pagando” os estudos dos mais ricos – o PSU é determinante, entre outras coisas, para definir o destino de boa parte das bolsas de estudos conferidas pelas universidades. Em 2015, um estudo apresentado no Fórum Econômico Mundial (FEM) mostrou que a educação superior no Chile é a 4.ª mais cara do mundo, quando tomada proporcionalmente aos salários das famílias. 

O cálculo do FEM mostrava que, em média, 73% da renda familiar acabava sendo destinada a bancar os custos de matrícula e manutenção dos estudantes – um número que superava até mesmo o de países de primeiro mundo conhecidos por suas altas taxas de ensino, como os Estados Unidos (onde a proporção ficou em 53%) e o Reino Unido (42%). “Isso significa que as famílias chilenas precisam se paralisar financeiramente para pagar as taxas das universidades”, afirmava o estudo. 

Apesar de ser conhecido por algumas instituições de excelência, no longo prazo o sistema implementado por Pinochet não chegou a acrescentar novas universidades entre as melhores. Hoje, segundo o QS World University Rankings, uma das classificações mais influentes do ensino superior no mundo, apenas três instituições chilenas estão posicionadas entre as 500 melhores do planeta – a Universidade do Chile e a Universidade de Santiago do Chile, públicas mas atualmente cobrando taxas de matrículas, e a Universidade Católica de Santiago, que sempre foi particular. As três já eram consideradas as instituições chilenas mais prestigiosas antes da ditadura. No mesmo ranking, aparecem cinco universidades argentinas, duas mexicanas, quatro colombianas e quatro brasileiras (USP, Unicamp, UFRJ e UFRGS). 

Apoio popular 

Os protestos estudantis pela volta da gratuidade começaram em 2006, e se tornaram uma constante com ocupação de liceus e universidades em 2011, 2012 e 2015. Marchas de até meio milhão de pessoas nas ruas de Santiago fizeram com que o governo, historicamente reticente em reverter a política educacional da ditadura, passasse a discutir uma revisão do modelo, o que levou à nova lei. 

Outro aspecto que ajudou a fortalecer a causa pela volta da gratuidade no ensino foi o escândalo das universidades com fins lucrativos no Chile. Embora o lucro nas instituições superiores seja proibido por uma lei de 1990, elaborada na época da redemocratização, a prática ainda é encontrada em várias faculdades particulares. Na última década, três universidades da Região Metropolitana de Santiago atraíram os holofotes quando se descobriu que seu faturamento e matrículas cresceram de forma continuada anualmente, enquanto o número de professores, livros na biblioteca e salas de aula permaneceram estagnados ou, até mesmo, diminuíram. 

A investigação acabou encerrada no ano passado por uma brecha legal: embora a proibição exista, não havia qualquer pena prevista na legislação. A proposta da gratuidade aprovada pelo governo da socialista Michelle Bachelet previa um aumento gradual das vagas, começando por estudantes de baixa renda em universidades públicas, até alcançar a totalidade das matrículas. A forma como a transição ocorrerá e sua extensão, no entanto, tornaram-se incertas após a troca de governo. “A nova administração diz que vai manter o existente até agora, ou seja, em torno de 70% dos estudantes mais pobres”, aponta Ingrid Boerr. “Aparentemente, o que periga não acontecer é a gratuidade universal”. 

Em suas primeiras entrevistas após o retorno à presidência, Sebastián Piñera, empossado no último dia 11 de março, deu a entender que sua prioridade será o ensino técnico, onde pretende elevar a gratuidade a até 90%. “Não podemos criar desempregados ilustrados. Se sai muita gente da universidade com título de educação superior e não encontra emprego, não estamos cumprindo com nossa missão”, argumentou o mandatário.

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