A reportagem da Gazeta do Povo sobre teses e dissertações pouco convencionais financiadas com dinheiro público provocou um debate intenso.
Professores de Ciências Sociais e de Comunicação da Universidade Estadual de Maringá (UEM) emitiram uma nota afirmando que a matéria “parece sofrer de etnocentrismo agudo”. Idelber Avelar, professor da Tulane University, nos Estados Unidos, atribuiu à Gazeta a adoção de “um dos sub-gêneros mais odiosos do ‘jornalismo’". Mylene Mizrahi, autora de uma tese de doutorado sobre Mr. Catra, disse que o texto representa um pensamento “elitista e preconceituoso”.
Do outro lado, o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, referiu-se à lista como uma “extraordinária coleção”. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) da Fundação Alexandre Gusmão, do Itamaraty, foi mais incisivo: são “teses debiloides”, “lixo acadêmico”. O promotor Guilherme Fernandes Neto, do Ministério Público do Distrito Federal, defendeu que o governo estabeleça prioridades na concessão de bolsas “para as áreas de conhecimento imprescindíveis para o nosso país, e não para nada que se assemelhe com as monografias [da reportagem]”.
O que precisa, então, ser levado em conta nessa equação? A Gazeta do Povo apresenta seis fatores que não podem estar ausentes do debate.
I – Os recursos são finitos
Uma das primeiras leis da economia é a lei da escassez. Para cada bolsa concedida pelo Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), vários candidatos acabam ficando sem financiamento para seus projetos de pesquisa. No Brasil, lembrar-se disso se tornou ainda mais importante após com o corte de gastos orçamentários provocado pela crise econômica.
Em termos de percentual das despesas públicas, já gastamos mais com educação do que Israel, Coreia do Sul, Dinamarca, Noruega, Suíça, Alemanha e Holanda. Isso significa que aumentar o orçamento da educação em larga escala não é factível.
O gráfico abaixo mostra o percentual de gastos com educação em relação ao total das despesas públicas. Os dados são da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Dessa forma, torna-se imprescindível que a aplicação de recursos obedeça a critérios objetivos.
II - O ensino básico está à míngua
As escolas brasileiras vão mal. No ranking do PISA, principal referência internacional, o país é o 63º em ciências, 59º em leitura e 66º em matemática entre 70 nações. O Brasil piorou em todos os índices na comparação com 2012. Se o país gasta relativamente muito com educação, por que nossas escolas têm resultados tão ruins em exames internacionais?
Parte da explicação está no gráfico seguinte, preparado pela OCDE: gasta-se muito com ensino superior e pouco com o ensino básico. O Brasil é o primeiro país à esquerda na figura: aplica mais de 4 dólares no ensino superior para cada dólar gasto no ensino básico.
Será correto gastar com um mestrado sobre os “aplicativos de pegação” o suficiente para custear um ano de estudos para 12 alunos da rede pública?
III - O dinheiro do contribuinte deve ser aplicado com parcimônia
Ao contrário de serviços essenciais como segurança pública e Justiça, que só podem ser oferecidos pelo Estado, o ensino superior 100% público não é um direito universal, nem está presente em grande parte dos países democráticos. Por isso há que se discutir se as pesquisas com pouco retorno devem continuar sendo bancadas com recursos públicos. E o contribuinte deve ter a palavra final.
O senador Cristovam Buarque (PPS-DF), um homem de esquerda que foi reitor da Universidade de Brasília e ministro da Educação no governo Lula, acredita que nem todos os cursos devem ser gratuitos – só os que interessam à sociedade e suprem demandas reais. “Hoje nós temos mais advogados do que o resto do continente americano junto. Justifica a gente tirar verbas do Estado, que está sem dinheiro, para bancar esses alunos?”, disse ele à Gazeta do Povo.
Sob o ponto de vista do respeito ao contribuinte, a solução parece simples. Se a maioria dos pagadores de impostos concorda em financiar projetos de pesquisa com os mostrados pela reportagem, não é necessário que o Estado retire dinheiro deles de forma compulsória: basta que o financiamento seja voluntário.
Mas, se a maioria dos pagadores de impostos discorda, não é correto que o Estado retire dinheiro deles à força para bancar esse tipo de projeto.
IV - A universidade deve buscar a elevação, não o rebaixamento moral
O uso de recursos públicos para a promoção de certos comportamentos é problemático. Mr. Catra, tratado como “sábio” pela autora da tese de doutorado dedicada a ele, é investigado por fazer apologia ao crime. Em um vídeo gravado antes de show em Manaus ele elogia os “traficas da Compensa” e aconselha as “novinhas” a se relacionarem com os criminosos. O bairro da Compensa é o berço das maiores quadrilhas de Manaus. Ele também elogia a “Família do Norte”, facção responsável pela morte de 54 detentos em presídios do Amazonas em janeiro, e até cita o nome de dois traficantes.
Tratar um personagem desses de forma elogiosa em uma tese de doutorado é legitimar uma cultura que, se parece atraente aos antropólogos no conforto da academia, por vezes funciona como um incentivo ao crime, à gravidez na adolescência e ao consumo de drogas em comunidades onde já há tantos outros problemas.
Não se tratam de problemas menores: segundo estudo feito pelo Programa da Adolescência do estado de São Paulo, por exemplo, uma jovem de 10 a 14 anos engravida por dia em bailes funk paulistas. Ao mesmo tempo, gravidez na adolescência é responsável por aproximadamente 25% dos casos de abandono escolar entre garotas, de acordo com a Unesco. É papel do Estado promover políticas que aumentem o bem estar social e a autonomia dos indivíduos, não o contrário.
Outra dissertação mencionada pela reportagem é o trabalho de Tedson da Silva Souza, que afirma ter participado, com outros homens, de sexo grupal em um banheiro público. Alguns trechos da dissertação de Tedson são impublicáveis.
Em um dos relatos, ele descreve como dois estranhos começam a praticar sexo oral dentro do banheiro. E prossegue: “A atitude do rapaz foi a senha para que eu e os demais homens que observavam de longe, cheios de desejo, nos sentíssemos a vontade (sic) para nos aproximar. Uma semi-roda com cerca de doze homens se formou em volta dos dois”. A partir daí, ele descreve uma cena de sexo em grupo. O ato descrito por Tedson configura crime, de acordo com o artigo 233 do Código Penal. A pena é de três meses a um ano de reclusão.
V - Nem todas as pesquisas são iguais
O Estado, por definição, atua em áreas nas quais o setor privado não tem condições de agir, ou para corrigir distorções do mercado. No caso da educação superior, é evidente que existem cenários distintos. Cursos como Direito e Jornalismo têm oferta mais do que suficiente de vagas no ensino privado.
Nas ciências sociais, há uma exigência menor em termos de estrutura física. A rigor, o que impede alguém escrever uma obra sobre o Big Brother Brasil, sem que isso seja necessariamente financiado com recursos públicos? Não se pode, no entanto, construir um propulsor de foguetes no quintal de casa.
A experiência mostra que o investimento nas ciências exatas gera empregos de alta remuneração, fortalece a indústria nacional e aumenta o grau de inovação tecnológica, o que tem um efeito multiplicador sobre a economia. Ao mesmo tempo, essas áreas do conhecimento dependem de investimentos de longo prazo, laboratórios de alto custo e especialistas com treinamentos muito específicos. Nem sempre as faculdades privadas suprem essa demanda.
Seja qual o aspecto analisado, o investimento em tecnologia merece tratamento prioritário. O Japão, onde a situação orçamentária é muito melhor do que a do Brasil, parece ter percebido isso: o governo do país planeja fechar cursos de humanas em dezenas de universidades. Não é preciso ir tão longe: uma alocação mais eficiente dos recursos públicos bastaria.
VI - Pesquisadores não são imunes a críticas
Críticas são parte essencial do processo democrático. A Gazeta do Povo procurou por conta própria a autora Mylene Mizrahi, responsável pela tese doutorado sobre Mr. Catra, para que ela expressasse sua posição em um artigo publicado há duas semanas.
Mas parte das reações negativas à reportagem sobre as pesquisas incomuns adotou um tom (ironicamente) elitista: o argumento era o de que pessoas de fora da academia não têm condições de criticar o que é produzido pelas universidades.
Tiago Barcelos Pereira Salgado, autor de uma dissertação sobre o youtuber Felipe Neto, por exemplo, protestou dizendo exatamente isso: “o autor da matéria não entendeu nada da dissertação ou mesmo do que se trate uma pesquisa, ou mesmo a comunicação, pois quem é doutor no assunto, na verdade sou eu”.
O apelo a uma imunidade imaginária revela uma distorção perversa: do cidadão comum, quer-se apenas o dinheiro dos impostos e o apoio tácito a qualquer seja o projeto de pesquisa desenvolvido. Por essa ótica, submeter-se a avaliações de produtividade, contribuição com a sociedade ou elevação intelectual e acadêmica são invasões inaceitáveis. Exige-se dinheiro público sem prometer nada em troca.
Conclusão
A lista de trabalhos acadêmicos compilada pela Gazeta do Povo pode ser um bom ponto de partida para uma discussão necessária: enquanto outras áreas da educação afundam e a pesquisa tecnológica fica estagnada, o financiamento integral e indiscriminado de pesquisas com pouco retorno visível à sociedade não pode ser mantido intocável.
Não deve ser proibido estudar Mr. Catra, Big Brother Brasil ou Dragon Ball Z. Mas não é razoável obrigar terceiros a oferecerem seu dinheiro e seu consentimento silente. No primeiro caso, agir assim é praticar extorsão. No segundo, exigir submissão.
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