Uma turma de alunos de um colégio público está a postos para o início da aula. Alguns minutos antes de bater o sinal, porém, um funcionário chega para dar um aviso desalentador: mais uma vez, o professor faltou, vocês estão liberados.
No país, o absenteísmo dos professores é um problema grave, já apontado pelo Banco Mundial, recentemente, como um dos maiores gargalos da educação brasileira. É o que está escrito no relatório “Um Ajuste Justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, divulgado em novembro do ano passado. De acordo com o documento, as ausências estão relacionadas a diversas causas, como o estresse e o trânsito, mas também são motivadas por leis permissivas que concedem licenças e opções de falta, muitas vezes, sem verificação.
O texto do relatório revela que o índice de faltas no estado de São Paulo, em 2015, chegou a representar 16% dos dias letivos. Em Pernambuco, no mesmo ano, o índice foi de 10%. Em Santa Catarina, no ano passado, as faltas registradas somaram 76.172 – só em licença premium, foram 4.933 concessões.
Ainda conforme a entidade internacional, a cada semana, os estudantes das escolas públicas na América Latina e no Caribe são privados do equivalente a um dia de aula – o que, de acordo com os pesquisadores, afeta diretamente o baixo nível das notas dos países da região no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Conforme os resultados de pesquisa da Prova Brasil 2015, 52% dos gestores escolares disseram que o alto índice de faltas dificulta o funcionamento da escola.
A alta taxa de ausência dos docentes é reconhecida pelo Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed). De acordo com a entidade, o absenteísmo pode impactar negativamente o desempenho dos estudantes, porém, pondera que não há uma permissividade exagerada dos estados em relação às faltas.
“O fato é que existe uma legislação que ampara os profissionais em seu direito de ausentar-se do trabalho quando é necessário. É um direito garantido e legítimo”, afirma o Consed.
Para o Banco Mundial, no entanto, a maior parte das leis não vincula desempenho, frequência e remuneração – além de terem poucos mecanismos capazes de incentivar o professor a manter a frequência adequada.
Grande parte dos estatutos que regem as carreiras de magistérios nos estados permite uma série de opções para a ausência do professor – em sua maioria, faltas que podem ser abonadas, sem prejuízo do salário. Conforme o Estatuto e Plano de Carreira do Magistério Público do Rio Grande do Sul, o docente pode se afastar da sala de aula dez dias por ano, por motivo de força maior, sem sofrer um centavo de desconto nos vencimentos. Além desse abono de faltas, a legislação gaúcha expressa mais onze incisos que tipificam os casos em que os docentes podem se ausentar.
O artigo 68 do estatuto, por outro lado, também coloca algumas possibilidades em que a ausência pode ser punida com um desconto no contracheque. É o caso, por exemplo, de atraso ou saída antecipada. De acordo com a lei, “perderá um terço do vencimento do dia o membro do Magistério que comparecer ao serviço dentro da hora seguinte à marcada para o início do expediente ou se retirar antes de findar o período de trabalho”. O corte de vencimento também ocorre, em alguns casos, se o professor tirar licença de interesse particular ou para acompanhar o cônjuge.
Lei (muito) permissiva?
Para os economistas Priscilla Albuquerque Tavares, Paula Reis Kasmirski e Rafael de Sousa Camelo, a resposta a essa pergunta pode ser “sim”. Autores do artigo “A falta faz falta? Um estudo sobre o absenteísmo dos professores da rede estadual paulista de ensino e seus efeitos sobre o desempenho escolar”, divulgado pela Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec), a ausência do professor tem relação direta com a fragilidade dos contratos de trabalho e a gerência pouco qualificada dos recursos humanos.
Segundo o estudo, outro fator que influencia o curto alcance dos braços estatais é a forte centralização do ensino público na esferas federal e estadual. Por conta do grande número de docentes, o trabalho de fiscalização da classe fica prejudicado. Além disso, os autores criticam a benevolência das legislações que regem os contratos de trabalho.
“Embora preveja regras punitivas para o alto absenteísmo, ações disciplinares e demissões raramente são aplicadas”, afirma a pesquisa. A sindicalização da categoria, também conforme os economistas, dificulta a implantação de medidas legais mais rigorosas.
Em São Paulo, três leis amparam de forma clara o absenteísmo. A Lei Complementar nº 294, de 1982, concede aos professores o direito a seis faltas abonadas por ano, limitado a uma ausência ao mês, nos casos “de moléstia ou outro motivo relevante”, segundo o artigo 1.º.
Nesta modalidade de falta, o professor precisa somente avisar ao seu superior da ausência até o dia seguinte ao não comparecimento. Em mãos, ele só precisa ter o requerimento de abono – ou seja, não é exigida nenhuma documentação para comprovar o motivo. Essas faltas, além de não modificarem o vencimento, não interferem nos dias contabilizados para a aposentadoria.
Também há o Decreto n.º 42.850, de 1963, em que há a possibilidade de os professores faltarem 24 dias ao ano. Nesta modalidade de ausência, porém, o servidor público perde 1/30 do vencimento caso se ausente um dia inteiro de trabalho e 1/90 em caso de cumprimento parcial da jornada diária. A justificativa dada pelo docente é analisada pelo superior imediato e tem a chance de não ser aceita. A mesma lei prevê que 30 faltas não justificadas em sequência, ou 45 intercaladas, dentro de um ano, caracterizam o abandono de cargo.
Causas
O conjunto de faltas dos professores paulistas, sem contar as ausências por motivos médicos, funciona como uma espécie de “varal”, de acordo com os pesquisadores. Quem permite esse acúmulo é o Decreto n.º 39.931, de 1995, que estabelece que o descumprimento de toda carga horária diária de trabalho caracteriza uma “falta-dia”, já o cumprimento parcial da jornada diária é considerado uma “falta-aula”.
Essa última opção de ausência é acumulada – e pendurada neste “varal” – até o professor preencher a jornada diária do contrato de trabalho. Depois, sim, é convertida em uma “falta-dia”. Com a regra, um professor com contrato de 35 horas semanais, por exemplo, pode faltar a quase duas aulas por semana. Por ano, a ausência pode chegar a doze dias sem prejuízos de salário e mais 24 dias sem sofrer nenhuma sanção disciplinar.
Alguns casos de alta taxa de absenteísmo também podem ser vistos nas redes municipais. Em levantamento realizado para um trabalho acadêmico da Universidade Federal do Paraná (UFPR), André Chen constatou que o gasto da prefeitura de Curiúva (PR) com as faltas chegou a R$ 104.734 no ano de 2015. Uma cifra considerável para um município de 15 mil habitantes, e que tinha, na época, apenas 84 professores contratados. “Esse valor perdido poderia ser reinvestido no próprio professor ou nas melhorias do sistema educacional”, diz Chen, que lamenta: “No entanto, talvez o maior custo do absenteísmo recaia sobre o aprendizado dos alunos”.
Para o Consed, várias causas explicam o fenômeno do absenteísmo – entre os citados pela entidade, está a desmotivação, a inadequação das condições de trabalho, a remuneração insuficiente e a jornada estafante. O conselho, no entanto, admite a necessidade da criação de políticas públicas que surtam efeito sobre as causas das ausências e, também, sobre as consequências da prática.
“Outra linha de ação importante é a qualificação da gestão de pessoal em cada unidade da rede, para desenvolver competências motivacionais e administrativas nos gestores. Eles devem estar preparados para estimular o pessoal de sua escola e, ao mesmo tempo, adotar as medidas necessárias para coibir abusos. É fundamental estabelecer um sistema adequado de informação de gestão de pessoal da rede”, analisa a entidade.
Combate
No Mato Grosso, o governo lançou há cerca de três anos uma lei de combate ao absenteísmo. A ação foi feita após o levantamento de números alarmantes sobre as ausências dos docentes em sala de aula.
De acordo com a Secretaria de Gestão, de 2010 a junho de 2014, o custo total com absenteísmo de professores da educação básica atingiu R$ 253 milhões. Em 2013, o número de processos de licença, afastamentos temporários e readaptação de professores foi de 10.619. Já em 2015, esse número subiu para 13.320, um crescimento de 25,44% no período.
A lei, que em vários momentos reitera a obrigação de o professor cumprir seu horário de forma integral, especifica quais serão os descontos sofridos pelos docentes faltantes. Pela nova regra, o servidor que se ausentar das atividades sem justificativa legal terá o dia de trabalho considerado como falta, o que implica em um desconto proporcional em seus subsídios.
Para conseguir fiscalizar de forma mais eficiente, o governo exige que a falta seja registrada em um livro de assiduidade e lançada em um sistema de acompanhamento até o décimo dia de cada mês. Além disso, a escola deve manter um relatório mensal de faltas injustificadas lançadas na plataforma. Essas, segundo a portaria, retardam a concessão da licença prêmio – a cada três faltas, o professor terá que trabalhar um mês a mais para tirar o benefício.
Para cada hora aula de falta injustificada, em carreiras de jornada de seis horas, o desconto será correspondente a 1/30 do subsídio total do servidor. A lei também enrijeceu as condições para concessão de licenças. Para os servidores efetivos, a ausência de até três dias por motivo de tratamento de saúde fica isenta de perícia médica, mas o professor tem de apresentar um atestado médico em até 48 horas para a direção da escola. Caso isso não ocorra, a falta será considerada injustificada. Hoje, no Estado, existem 764 escolas estaduais, cerca de 370 mil alunos e 40 mil servidores da educação.
Para o Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de Mato Grosso (Sintep-MT), a legislação não surtirá nenhum efeito se não forem modificadas duas questões estruturais: as duplas jornadas e as péssimas condições de trabalho.
Jocilene Barboza, vice -presidente do Sintep, diz que as condições de trabalho na educação básica são muito ruins – agravadas pela falta de estrutura das escolas, a carência de materiais pedagógicos e falta de equipamentos tecnológicos. Esses problemas, segundo ela, impulsionam a chamada síndrome de Bournout, um distúrbio psíquico de caráter depressivo causado pelo excesso de trabalho e cobrança.
“Outro fator que impacta na saúde dos professores são as duplas jornadas de trabalho. No caso das mulheres, que são a maioria na educação, a jornada é tripla, somando as tarefas domésticas. Nestas condições, elas estão mais propensas a problemas de saúde, principalmente psicológicos, faltas e afastamentos”, afirma.
Entre outras propostas, o sindicato defende a adoção de uma jornada única, de 30 horas, com dedicação exclusiva a uma escola.