Não é possível compreender os atuais desdobramentos da política internacional sem entender a guerra civil que, desde março de 2011, se desenrola na Síria. Este conflito é importante por, pelo menos, dois motivos. O primeiro é que seu desfecho poderá reconfigurar de forma decisiva o Oriente Médio. O segundo, ainda mais relevante, é que o conflito sírio atraiu a presença e o envolvimento das principais potências regionais e globais, apresentando-se como um possível ensaio geral de uma guerra sistêmica – aquilo que popularmente chamamos de “guerra mundial”.
Os Estados Unidos da América, a Rússia, o Irã, a Turquia e a França estão todos envolvidos de algum modo no conflito, assim como uma série de atores não-estatais, como o Estado Islâmico, a al-Qaeda, o Hezbollah e grupos formados por árabes seculares e por curdos. Além disso, também pesam sobre os desdobramentos do conflito a influência econômica da China e de países do golfo pérsico, como a Arábia Saudita e o Qatar.
O envolvimento de todas essas potências nas disputas domésticas de uma nação remete, mesmo que vagamente, à Guerra Civil Espanhola, que precedeu a II Guerra Mundial e se estabeleceu como um dos marcos políticos do século passado.
O conflito espanhol teve início em julho de 1936, quando o General Francisco Franco liderou uma revolta nacionalista contra o governo republicano, de inclinações socialistas, precipitando o envio de tropas por parte da União Soviética, da Alemanha Nazista e da Itália Fascista para o país ibérico. A França e o Reino Unido não se envolveram efetivamente, mas acompanharam de perto todo o desenrolar do conflito, que acabou servindo como um ensaio geral para a guerra sistêmica que viria a seguir. Ali, novas armas e estratégias foram testadas, até que o conflito chegasse a um desfecho em abril de 1939, apenas cinco meses antes do início da II Guerra Mundial, marcado pela invasão da Polônia pelos nazistas alemães e pelos comunistas soviéticos.
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Leia a matéria completaAfirmar que qualquer cenário minimamente parecido com aquele que precedeu o maior conflito de todos os tempos não pode ser ignorado nem tratado com leviandade não é exagero — e é com isso em mente que devemos analisar os desdobramentos do conflito sírio, com destaque para a resposta dos EUA ao uso de armas químicas, realizado no dia 4 de abril na cidade de Khan Shaykhun em Idlib, província majoritariamente controlada por grupos ligados à al-Qaeda, causando a morte de cerca de 100 civis.
Perguntas e respostas
Na última quinta-feira, dia 6 de abril, o presidente Donald Trump ordenou um ataque contra a base aérea síria de Shayrat, suscitando uma série de perguntas, cujas respostas são imprescindíveis para compreender os impactos de uma ação americana mais direta no conflito e antecipar o que virá a seguir.
A primeira pergunta que se impõe está relacionada às motivações por trás do uso de armas químicas. Por que Bashar al-Assad, presidente sírio, realizaria um ataque dessa natureza, em um momento em que tudo parecia conspirar a seu favor?
A explicação oficial de Assad, endossada pelos russos, sustenta que o gás sarín teria sido liberado após um ataque convencional contra um depósito de armas da al-Qaeda. Embora não seja impossível, essa hipótese é pouco provável, uma vez que o gás sarín tende a ser destruído em temperaturas elevadas como a que é causada por explosões. A probabilidade de que o gás tenha resistido à explosão e se espalhado pela vila é pequena o bastante para ser encarada com ceticismo.
Há a possibilidade de que o próprio Assad tenha optado pelo uso de armas químicas, como uma tática destinada a aterrorizar a população, deixando um exemplo para os civis que ainda cogitam auxiliar os rebeldes
Há outras explicações possíveis. Por um lado, há a possibilidade de que um comandante local tenha sido o responsável pela decisão de realizar um ataque dessa natureza. Por outro, há a possibilidade de que o próprio Assad tenha optado pelo uso de armas químicas, como uma tática destinada a aterrorizar a população, deixando um exemplo para os civis que ainda cogitam auxiliar os rebeldes, além de abrir o caminho para uma vitória definitiva sem precisar esgotar ainda mais seus recursos.
Ambas as explicações são plausíveis. Embora se possa argumentar que o governo sírio mantém um rígido controle de seu arsenal químico, não se pode ignorar a presença de comandantes indisciplinados entre seus aliados. Quanto à segunda explicação, seria compreensível que, diante da certeza de que nunca será amado em certas regiões, o regime fizesse a velha opção maquiavélica de agir com a intenção de se tornar ainda mais temido pelos seus oponentes – esta parece ser a hipótese aceita por Trump e seus generais.
Um segundo conjunto de perguntas diz respeito à postura dos russos. Vladmir Putin se envolveu, decisivamente, no conflito em 2013, com a finalidade de preservar o governo de Assad, dar uma demonstração de seu poderio militar para a população russa, além, é claro, de aumentar seu poder de barganha frente os países ocidentais, conseguindo assim uma posição mais favorável nas negociações sobre a Crimeia e sobre o leste da Ucrânia.
Desde seu envolvimento, a Rússia tem ampliado sua capacidade de controlar o regime sírio e, ao menos em tese, seus serviços de inteligência deveriam ser capazes de prever e impedir o uso de armas químicas no conflito. Sendo alvo constante de críticas por seu apoio ao governo de Bashar al-Assad, a Rússia não teria nenhum interesse em promover ou permitir um ataque dessa natureza – afinal, quanto pior a imagem de Assad perante a opinião pública internacional, mais difícil se torna a tarefa dos diplomatas russos de defender seu apoio ao regime como uma opção legítima.
Sendo alvo constante de críticas por seu apoio ao governo de Bashar al-Assad, a Rússia não teria nenhum interesse em promover ou permitir um ataque dessa natureza – afinal, quanto pior a imagem de Assad perante a opinião pública internacional, mais difícil se torna a tarefa dos diplomatas russos de defender seu apoio ao regime
É importante ressaltar, no entanto, que a sobrevivência de Assad, em si mesma, não é imprescindível ao interesse nacional russo e que os argumentos que são apresentados para comprovar essa tese não se sustentam. O mais forte desses argumentos é o de que a Rússia visa obter autorização para a construção de uma base naval com acesso para o mediterrâneo e que somente Assad poderia garantir essa autorização. Mesmo este argumento, no entanto, se mostra frágil diante do fato incontestável de que a construção e a manutenção dessa base teriam como condição inevitável a autorização contínua de passagem por parte da Turquia – isso para não mencionar a exposição da base e das frotas russas ao poderio americano, ou a existência de objetivos e preocupações mais urgentes do que a fantasia moscovita de se tornar um poder mediterrâneo.
Também cabe lembrar que o envolvimento de Moscou no conflito foi pensado para demonstrar o poder e a maturidade estratégica das tropas russas, de modo a produzir um contraste com a atuação dos EUA no Iraque e fortalecer as ambições de reforma global dos eurasianos. A recorrência de ataques químicos, portanto, não apenas inviabiliza esse objetivo como projeta a percepção de que os russos ou são cúmplices da brutalidade do regime, ou são incapazes de controlá-lo – isto é, ou são criminosos ou incompetentes.
Nessas circunstâncias, qualquer objeção, por parte de Moscou, aos ataques americanos contra um regime que nem sequer estaria em vigência, se não fosse por sua interferência, torna-se um pouco deslocada e desconfortável, enfraquecendo até mesmo o poderoso argumento de defesa da soberania síria.
Há, é claro, a hipótese de que, mesmo diante de tudo isso, os russos tenham incentivado ou promovido diretamente o ataque – numa tática similar à descrita por Alexander Litvinenko no livro “Blowing Up Russia” — com a finalidade de testar o novo governo americano. Mas os riscos da operação, e a existência de alternativas significativamente mais seguras que poderiam servir ao mesmo propósito, faz desta uma hipótese pouco provável.
Diante disso, a autoria do ataque permanece em aberto, o que não significa que o desfecho das investigações possa afetar significativamente a qualidade da ação escolhida por Donald Trump, que, como veremos abaixo, parece ter considerado essa “incerteza” em seu processo decisório.
Por que Donald Trump atacou a Síria?
Por isso mesmo, as perguntas mais importantes são aquelas que dizem respeito ao processo de tomada de decisão que levou Donald Trump a optar pelo bombardeio da base de Shayrat e que, de algum modo, podem ajudar a esclarecer a visão estratégica por trás da ação escolhida.
As reações ao bombardeio foram as mais diversas, suscitando elogios por parte de alguns dos críticos mais ferrenhos do presidente e críticas por parte de alguns de seus apoiadores mais exaltados. Aos que desejam compreender o que efetivamente se passou, no entanto, cabe analisar os condicionantes internos e externos para identificar quais eram as opções disponíveis ao presidente americano, compreender como ele chegou a uma escolha, e entender o que essa escolha revela sobre a visão adotada por ele sobre o conflito e, mais amplamente, sobre sua política de segurança nacional.
Como se sabe, esta não é a primeira vez que os EUA buscam identificar alvos ligados ao regime sírio para possíveis ataques militares. Em 2013, após o uso de armas químicas em Ghouta, que violou a famigerada “linha vermelha” de Obama, as forças armadas americanas e seus principais aliados consideraram uma série de opções de retaliação, sendo freadas pelo imobilismo de Obama e pela engenhosidade estratégica de Putin, que assumiu a responsabilidade de controlar a situação no território sírio. De 2013 para cá, houve, no entanto, uma mudança bastante significativa que acabou por limitar as opções disponíveis: o ingresso de tropas russas na Síria em 2015.
Como os EUA não têm qualquer intenção de começar um conflito armado com a Rússia, essa mudança reduziu drasticamente as opções disponíveis em 2013 para um número bastante limitado de opções em 2017, impondo ao presidente americano uma situação muito mais delicada do que a que ele teria encontrado quatro anos atrás. Nessas circunstâncias, é possível afirmar com elevado grau de certeza que as opções, apresentadas a ele por generais e assessores, não tenham ido além das que são descritas abaixo.
Um ataque punitivo pontual a um alvo escolhido a dedo é o menos arriscado e o que menos demanda recursos. Essa opção seria suficiente para reafirmar a credibilidade dos EUA e sua disposição de cumprir sua palavra, desestimulando qualquer uso futuro de armas de destruição em massa e enviando um recado claro a todos os inimigos, efetivos e potenciais, do país e de seus aliados. Ataques punitivos podem variar em intensidade, duração e escopo, mas têm como finalidade última enviar uma mensagem clara às partes envolvidas e interessadas, sem, no entanto, dar início a qualquer ação militar de médio ou longo prazo. Como o próprio nome diz, trata-se de uma ação pontual, com um objetivo claro e não a primeira em uma sequência de ações destinadas a alterar os rumos do conflito em qualquer direção.
Determinando um alvo. Nesta opção, há um número maior de alvos possíveis do que o presidente estaria disposto a considerar. Esses alvos são compostos basicamente por dependências militares utilizadas pelo comando e pelo alto escalão do regime sírio, e seu ataque enviaria a mensagem de que a liderança política e militar será responsabilizada e pagará por qualquer ação que, como o uso de armas químicas, seja considerada inaceitável pelos EUA e por seus aliados. Isso não significa, entretanto, que o Presidente Bashar al-Assad esteja entre os alvos possíveis, uma vez que um ataque dirigido contra ele arrastaria os EUA para o conflito, algo que, como a Casa Branca continuamente tem lembrado, não está nos planos do Presidente Trump.
Além disso, para o real sucesso dessa opção, o ataque deve ser realizado contra um alvo de grande valor simbólico e com o menor quociente de riscos e despesas possível. Nesse contexto, a escolha mais óbvia é a base de onde partiu o avião cujo ataque teria provocado a morte dos civis, já que, não custa lembrar, o regime sírio não questiona a veracidade do ataque nem nega o envolvimento do avião que partiu de Shayrat no ocorrido. Assad e seus aliados alegam ter realizado um ataque convencional, que, ao atingir um depósito mantido pelos rebeldes, acidentalmente, teria liberado o gás responsável pela morte dos civis; o que significa que há uma crença compartilhada de que a base serviu de pontapé inicial para o ataque, quer este tenha sido intencional ou não, fazendo dela um alvo praticamente perfeito.
Caso o presidente desejasse ir além, ele poderia optar pelo extermínio da capacidade do regime sírio de empreender ataques com armas químicas ou com armas de destruição em massa de modo geral. Neste cenário, o ataque às dependências utilizadas pelo comando militar deveria ser, cautelosamente, combinado com uma série de ataques aos meios de comunicação das forças leais ao regime e a toda uma rede de alvos estratégicos, o que provavelmente incluiria sistemas de defesa mantidos pelas tropas russas e precipitaria um conflito entre as duas potências.
Determinando um alvo. Neste cenário, os ataques deveriam ser direcionados aos três meios de que o governo de Damasco dispõe para realizar ataques químicos: sua força aérea, seu sistema de mísseis balísticos e sua artilharia de longo alcance. Embora algumas bases aéreas tenham sido capturadas ou neutralizadas pelos rebeldes, o regime ainda controla pelo menos seis bases funcionais que podem ser utilizados em ataques químicos.
Os EUA teriam que neutralizar todas as seis bases, optando por um bombardeio completo, por um ataque às aeronaves estacionadas ou pela destruição dos depósitos de combustível e de munição, combinando qualquer uma dessas ações com a sabotagem dos radares, das áreas de manutenção, da infraestrutura de controle no solo e, provavelmente, dos sistemas de defesas.
Além da Aeronáutica Síria, o ataque também teria, necessariamente, que englobar as demais forças leais ao regime que possuem artilharia de longo alcance e mísseis balísticos capazes de projetar armas químicas, o que inclui a Rússia e o Irã. A complexidade e a natureza desse tipo de ação, além dos riscos de um confronto direto com os russos, a torna inviável a quem, como o Presidente Trump, não está disposto a ingressar em um conflito pleno contra o governo de Assad e seus aliados.
Uma terceira alternativa, que aparentemente nem sequer foi considerada pelo presidente, é a do envolvimento pleno dos EUA no conflito, com a finalidade de derrubar e substituir o regime sírio. A maior parte das críticas feitas pelos apoiadores de Donald Trump foram feitas por quem, por desconhecimento ou temor, acredita que qualquer ação militar americana levaria (e levará) a esta opção, algo que está longe de ser verdade. Neste cenário, o presidente deveria estar disposto a iniciar uma ação militar extremamente complexa, custosa e incerta, do tipo que foi realizada no Iraque e no Afeganistão — uma opção que, como observado acima, tem sido reiteradamente rejeitada pela Casa Branca e, ao que tudo indica, não deve nem ao menos ter sido cogitada na atual conjuntura.
Por fim, o presidente poderia ter seguido a recomendação dos isolacionistas e não ter feito nada. Neste cenário, o presidente deveria justificar sua decisão, provavelmente recorrendo a um discurso que afirmasse seu compromisso incontornável e exclusivo com os problemas domésticos e demonstrasse sua determinação de ignorar o que ocorre em outras regiões do mundo, mesmo que esses eventos representem riscos claros para a segurança nacional americana — conter o uso indiscriminado de armas químicas (um tipo de arma de destruição em massa), por exemplo, é objetivamente uma questão de segurança nacional e seu uso demanda uma resposta, independentemente de quem seja o responsável.
Ao contrário do que alegam os isolacionistas, essa opção não implicaria resultados neutros, mas a proliferação do caos e da desordem em várias regiões do globo, a começar pelo conflito entre as duas Coreias e pelas tensões do Leste Europeu, do mar do sul da China e do próprio Oriente Médio, uma vez que todos os atores envolvidos nessas questões realizariam um novo cálculo estratégico e acrescentariam a variável “isolacionismo americano” à equação.
Diante disso, portanto, era necessário encontrar um meio termo entre o completo isolacionismo e o completo ativismo, do tipo que é defendido pelos neocons e pelos cosmopolitas liberais de modo geral e que, via de regra, justifica as operações de mudança de regime. Como veremos, foi exatamente o que o Presidente Donald Trump fez.
Riscos e custos
Embora a gama de opções de ações militares disponíveis varie no grau e na probabilidade de risco, nenhuma delas é totalmente segura. Ao analisar as opções, Donald Trump e seus assessores tinham consciência de que os riscos eram muitos, podendo ir desde a perda material e a baixa de militares americanos até o início de um conflito armado com a Rússia e o desencadeamento de um conflito sistêmico.
Mesmo que os ataques fossem empreendidos de forma cirúrgica e impecável (como parecem ter sido), haveria consequências para as operações americanas no território sírio, incluindo aquelas que têm como alvo o Estado Islâmico. Qualquer ação poderia aumentar significativamente a probabilidade de que as forças aliadas a Damasco se sentissem motivadas a interferir e a atrapalhar as operações aéreas e terrestres dos EUA no país, gerando tensões e demandando cuidados extras. Além disso, Moscou provavelmente suspenderia o acordo de coordenação militar com Washington que tem por finalidade evitar incidentes no espaço aéreo sírio, acrescentando um ingrediente extra de confusão (desde que o texto foi escrito, esta última previsão se confirmou).
Em suma, não haveria opções fáceis na Síria e qualquer decisão levaria a consequências mais ou menos indesejáveis para Washington, podendo, por uma via ou por outra, aumentar ainda mais os riscos de uma escalada militar entre Rússia e EUA e multiplicar a ocorrência de erros de cálculo em um conflito que já é complicado o bastante – isso só seria evitável se o presidente e seus conselheiros conseguissem chegar a uma resposta próxima do ideal.
A decisão de Donald Trump
Tendo um conhecimento razoável da situação e conhecendo as opções disponíveis, é possível compreender o processo de tomada de decisão utilizado pelo presidente americano e inferir, a partir de sua decisão efetiva, o que podemos esperar de sua política de segurança nacional e, portanto, de suas ações futuras.
Todo presidente desenvolve propostas políticas e as apresenta com uma roupagem atraente em seus discursos. Porém, nos momentos decisivos, mesmo os mais determinados a cumprir suas promessas — como Donald Trump — são limitados pela realidade, isto é, pelo conjunto de condicionantes domésticos e internacionais que compõem uma dada conjuntura. Isso exige um esforço considerável para se chegar à melhor solução possível em determinadas circunstâncias e, portanto, torna inadequadas as cobranças feitas por quem não está familiarizado com o processo de tomada de decisão político e militar, ou não tem imaginação suficiente para reconstruir mentalmente os limites impostos por determinadas circunstâncias, e que, exatamente por ignorar que um presidente opera na esfera do possível, tem como expectativa algum tipo de solução ideal, que nunca será implementada por existir apenas no mundo inefável das ideias.
O presidente Donald Trump não traiu sua base nem descumpriu suas promessas. Pelo contrário, ele fez o que tinha de ser feito para evitar o ingresso dos EUA em um conflito armado, seja pela via da imprudência intervencionista, seja pela via da fraqueza convidativa do isolacionismo
O presidente Donald Trump não traiu sua base nem descumpriu suas promessas. Pelo contrário, ele fez o que tinha de ser feito para evitar o ingresso dos EUA em um conflito armado, seja pela via da imprudência intervencionista, seja pela via da fraqueza convidativa do isolacionismo. Ele continua comprometido com o seu objetivo de priorizar as questões domésticas, de reestruturar a economia e as forças armadas americanas, bem como de evitar uma exposição desnecessária dos EUA em conflitos que não afetam o interesse nacional americano; mas, ao contrário de seus críticos, entende que a passividade e a inação teriam consequências bastante distintas das esperadas, podendo precipitar justamente os conflitos que ele, manifestamente, deseja evitar.
Trump fez de forma magistral o que qualquer pessoa que, compartilhando de seus objetivos e se vendo naquela situação, seria compelida a fazer: realizar uma ação pontual, viável, sem qualquer tipo de exposição desnecessária e gastando o mínimo de recursos possível. Com isso, de uma só vez, ele demonstrou o poder americano e expôs seus limites — exibindo, porém, sua capacidade de alcançar excelentes resultados, mesmo diante dessas limitações.
O que os apoiadores frustrados do Presidente Donald Trump, e os críticos do ataque de modo geral, precisam entender é que ignorar o uso de armas químicas não era uma opção viável, independentemente de quem as tenha utilizado. As razões disso são muitas. Em primeiro lugar, o uso desse tipo de armas tem o efeito de um ato de terror e, com a perspectiva de que essas armas caiam nas mãos de grupos terroristas, seu uso acaba espalhando o medo por todo o mundo, incluindo os EUA e seus aliados. Em segundo lugar, o exemplo deixado pela decisão de Obama de não retaliar compeliu o atual presidente a agir de modo a se distinguir claramente de seu antecessor. Por fim, a análise da situação concreta, o levou à conclusão de que a inação não era a melhor maneira de alcançar o objetivo de manter os EUA seguros e distantes de um conflito.
Os que o criticaram por não adotar uma ação mais enérgica devem entender que qualquer tipo de ação decisiva na Síria é impossível
Do mesmo modo, os que o criticaram por não adotar uma ação mais enérgica devem entender que qualquer tipo de ação decisiva na Síria é impossível. Os EUA contam, atualmente, com um efetivo de mais ou menos mil militares na Síria, quando precisaria de um efetivo pelo menos cem vezes maior do que isso para derrubar o regime e tentar pacificar o país. Além disso, como os americanos aprenderam no Iraque, é muito mais fácil derrubar um regime do que o substituir efetivamente e conseguir qualquer sucesso na pacificação do país.
Os EUA simplesmente não podem se envolver em um conflito infindável, no momento mesmo em que seu presidente e principal comandante acaba de definir como prioridade a reabilitação de seu poderio militar, desgastado após 15 de conflitos desnecessários. Mesmo desconsiderando as consequências nocivas de uma mudança de regime (a Síria poderia ter um desfecho ainda mais desastroso que o da Líbia), essa opção não seria viável e, ao menos por ora, não deveria ser cogitada nem mesmo pelos maiores entusiastas das operações de mudança de regime ou pelos opositores mais imprudentes da Rússia.
Resultados alcançados
Um último dado, tão relevante quanto os anteriores para compreender o processo decisório e a política de segurança nacional de Donald Trump, é a divisão que há, no seio de seu governo, entre isolacionistas – como Steve Bannon, estrategista-chefe da Casa Branca – e cosmopolitas – como Jared Kushner, assessor sênior e genro do presidente. Representando e expressando as duas principais posições adotadas pelos republicanos e pela base de Donald Trump, esses dois grupos defendiam, ao menos no campo das ideias, posições que tiveram de ser descartadas pelo presidente.
Diante de duas opções ideológicas e impraticáveis, Trump optou por um ataque punitivo pontual, a primeira opção analisada neste artigo, realizando uma ação calculada para ter poucas baixas, para não atingir civis nem militares estrangeiros, e para funcionar como um indicativo claro de que o uso de armas de destruição em massa não será tolerado, sem, no entanto, levar o governo americano à uma mudança radical de postura e de política frente ao conflito e, menos ainda, ao compromisso com qualquer tipo de operação de mudança de regime.
Se Trump não agisse, ele se revelaria fraco e comprometeria a segurança de seu país e de seu governo. Se Trump se envolvesse de modo excessivo no conflito, ele se revelaria imprudente e comprometeria a segurança de seu país e de seu governo. Com um ataque punitivo pontual, realizado pelo disparo de 60 mísseis tomahawk, a partir de dois destroyers da frota mediterrânea, contra a base de Shayrat, Trump conseguiu cumprir seus objetivos com um quociente de custos e de riscos mínimo.
Se Trump não agisse, ele se revelaria fraco e comprometeria a segurança de seu país e de seu governo. Se Trump se envolvesse de modo excessivo no conflito, ele se revelaria imprudente e comprometeria a segurança de seu país e de seu governo
Essa ação também parece ser suficiente para aplacar temporariamente a pressão dos dois grupos que se agitam no seio do governo e para evitar, ao menos a curto prazo, novos embates dessa natureza. O grupo de Bannon provavelmente ficará satisfeito o suficiente com a recusa do presidente de se envolver em uma operação de mudança de regime. O grupo de Kushner provavelmente ficará satisfeito o suficiente com a demonstração de que os EUA estão prontos para exercer sua liderança diante de ameaças globais.
Além de alcançar seus objetivos imediatos (enviar uma mensagem clara de que não tolerará o uso de armas químicas, evitar um conflito com a Rússia e, ao mesmo tempo, aumentar o poder de barganha americano), Donald Trump conseguiu ainda uma série de vitórias colaterais.
Em primeiro lugar, obrigou seus adversários na classe política e na mídia a elogiar sua ação e sua competência, desmantelando uma das principais narrativas utilizadas contra ele. Em segundo lugar, conseguiu enfraquecer as suspeitas de que deve algo a Vladmir Putin e à Rússia. Em terceiro lugar, enviou um recado claro para a China, para o Irã e principalmente para a Coreia do Norte de Kim Jong-un.
Por fim, evitou que o conflito sírio, ao menos por ora, se deteriorasse e levasse a uma guerra sistêmica. Muitos dirão que ainda é cedo para dizer, mas Trump parece ter conseguido resolver uma parte relevante de seus problemas militares com uma única ação – um feito comparável ao do Presidente John F. Kennedy na Crise dos Mísseis.
Filipe Martins é professor de política internacional, analista político e especialista em forecasting, análise de riscos e segurança internacional
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