Em harmonia com a agenda antiglobalista do presidente Donald Trump, o governo dos Estados Unidos informou que irá se retirar da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Segundo a notificação do Departamento de Estado, a decisão será efetivada no dia primeiro de janeiro de 2018 e foi motivada, dentre outras coisas, pela percepção de que a Unesco necessita de reformas profundas, capazes de solucionar não apenas seus problemas financeiros e administrativos, mas também de corrigir o escandaloso desvio de função que a converteu em um instrumento da agenda de demonização do Estado de Israel.
O que pode haver de surpreendente nessa decisão é rapidamente desfeito à luz do histórico da relação do país norte-americano com a agência da ONU e, de modo ainda mais definitivo, mediante uma análise detida das ações que essa instituição tem realizado, ao longo dos anos, em nome da educação, da ciência e da cultura.
EUA e Unesco – Uma relação complicada
Foi o presidente Ronald Reagan quem primeiro retirou os EUA da Unesco. Isso ocorreu em um momento decisivo da Guerra Fria, em 1984, devido a politização excessiva da agência, que havia sido convertida em um instrumento do antiamericanismo e do antiocidentalismo, uma espécie de câmara de ressonância das estratégias e dos objetivos soviéticos revestida por um verniz terceiro-mundista.
Essa decisão só foi revista 18 anos depois, em 2002, quando o Presidente George W. Bush decidiu retomar os laços com a agência da ONU na esperança de cooptá-la para a agenda neo-conservadora, resumida, à época, de modo bastante vago, como uma missão para promover a democracia e os direitos humanos. Na ocasião, Bush garantiu aos seus críticos que a agência havia sido reformada e que já não era possível encontrar nela nenhum dos elementos que, duas décadas antes, haviam motivado a decisão de Reagan.
Mais recentemente, por ocasião do ingresso da Palestina na Unesco, houve outro revés, quando o presidente Barack Obama se viu forçado a cortar 22% do orçamento destinado à agência, em razão de uma lei americana que proíbe o financiamento de qualquer órgão do Sistema ONU que reconheça a Palestina como um Estado.
A natureza conturbada e intranquila desse relacionamento revela que, longe de ser uma excentricidade do presidente Donald Trump, a desconfiança em relação a Unesco é uma tradição de pelo menos três décadas na política externa americana, observada sobretudo por políticos conservadores ou mais próximos ao conservadorismo. Mas, afinal, quais são as razões dessa desconfiança e por que ela insiste em retornar?
Os vínculos autoritários da Unesco
Ao contrário do que uma análise superficial pode sugerir, nem tudo se resume ao caráter francamente anti-israelita adotado pela agência em resoluções como a que foi aprovada em 2016 com o intuito de negar o vínculo milenar de Israel e do povo judeu com a cidade de Jerusalém. Este certamente é um fator relevante, mas há muitos outros motivos.
Já em 1978, a Heritage Foundation produziu uma série de relatórios que demonstravam que, entre os quadros da Unesco, havia um número desproporcionalmente elevado de militantes marxistas e um número insignificante de intelectuais e cientistas capazes de dar alguma contribuição efetiva para a promoção da educação e da cultura.
Em 1980, em uma nova série de relatórios, o think tank americano mostrou que a situação estava se deteriorando ainda mais sob a gestão de Amadou-Mahtar M’Bow, sétimo diretor-geral da agência, um fã declarado de ditadores socialistas e um dos mais ferrenhos defensores da famigerada “Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação”, um projeto que tinha como objetivo declarado “reorganizar e controlar os fluxos globais de informação”.
Sob a desculpa de tornar mais equânime e justa a troca de informações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, na prática esse projeto preconizava a criação de um órgão supranacional que seria encarregado de criar uma série de restrições à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e à comunicação de modo geral.
Dentre outras coisas, o projeto visava implementar a proibição, em países em desenvolvimento, da reprodução de peças de publicidade produzidas em países desenvolvidos; a criação de mecanismos para contrabalancear a hegemonia americana na indústria cinematográfica, e o estabelecimento de regras que obrigassem as grandes agências de notícia a realizar uma cobertura mais positiva dos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos.
Nesse período, não era difícil perceber que a Unesco estava mais interessada em promover uma espécie de socialismo mundial do que em prestar serviços relevantes à promoção da educação, da ciência e da cultura. Essa inversão foi investigada em profundidade pelo filósofo francês Jean-François Revel, que no livro La Connaissance Inutile, de 1988, tentou compreender como havia sido possível que, em plena era da informação, órgãos como a Unesco fossem instrumentalizados em benefício da revolução socialista sem, no entanto, perderem prestígio e credibilidade.
Revel voltaria ao assunto doze anos mais tarde, no segundo semestre de 2000, em seu monumental La Grande Parade. Buscando compreender as razões que haviam possibilitado a sobrevivência do socialismo mesmo após o colapso da URSS, o filósofo francês acabou retornando às atividades da Unesco para investigar uma série de episódios, tais como a celebração da memória de Ho Chi Minh, realizada pela agência em 1990 por ocasião do centenário do nascimento do ditador vietnamita.
Ao constatar o teor altamente propagandístico do evento, Revel o apontou como ilustração perfeita do que havia de errado com a agência da ONU: “se verdadeiramente servisse à ciência, a Unesco teria convocado historiadores de verdade e não socialistas interessados em mistificar e exaltar a biografia de Ho Chi Minh; se verdadeiramente servisse à educação, a Unesco não teria se colocado a serviço da glorificação de um ditador que reprimia até mesmo a liberdade de consciência; se verdadeiramente servisse à cultura, não teria banido deste evento qualquer voz dissonante e qualquer observação não laudatória ao vietnamita”.
Vale dizer que as homenagens a Ho Chi Minh são apenas uma pequena amostra do apreço que a burocracia permanente da Unesco tem por representantes do panteão socialista. Em 2013, o homenageado foi o guerrilheiro Che Guevara, que em uma grande celebração de caráter francamente apologético teve sua obra e sua vida elevadas ao patamar de “tesouro histórico” e incluídas no “Registro de História do Mundo”.
A anatomia de um projeto totalitário
O mesmo Jean-François Revel de La Connaissance Inutile e de La Grande Parade mostrou que nada disso ocorreu por mera coincidência. Na Unesco, antigos tecnocratas marxistas se sentiam em casa e completamente à vontade para continuar apoiando regimes autoritários e experiências revolucionárias cada vez mais abrangentes, defendendo uma série de normas e de projetos que, à semelhança da “Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação”, visavam criar restrições e controles que afetariam todas as nações e todas as pessoas do mundo.
Na base desses projetos, encontramos as mesmas utopias e o mesmo desprezo pelas soberanias nacionais, pelos valores tradicionais e pelas liberdades individuais que animaram o movimento revolucionário desde sua gênese.
Não surpreende, portanto, que a Unesco seja vista por estudiosos do globalismo como uma das maiores ameaças à soberania nacional, à manutenção das tradições locais e à preservação de sociedades formadas por pessoas livres e conscientes.
Tampouco surpreende que seu primeiro diretor-geral e um de seus principais mentores intelectuais, Julian Huxley, tenha servido de inspiração para o romance Admirável Mundo Novo, a famosa distopia escrita por Aldous Huxley, irmão de Julian.
Adepto da eugenia e do darwinismo social, Julian Huxley é o autor do livro Unesco: seu propósito e sua filosofia, escrito para apresentar o projeto de construção de uma sociedade mundial pacífica, livre das lealdades nacionais e das superstições religiosas, planejada cientificamente e educada para adquirir uma nova ética global, composta de valores, atitudes e comportamentos a serem transmitidos, em escala global e por meio de instituições de ensino.
O que pode haver de aparentemente belo nesse ideal não passa de um grande engano e se desfaz diante da realização de que, para colocá-lo em prática, seria necessário corroer as soberanias nacionais, eliminar as tradições religiosas e realizar uma revolução pedagógica que, por meio do controle dos currículos escolares, fosse capaz de impor uma ética voltada para criação de uma nova sociedade – uma operação revolucionária que demandaria uma concentração de poder similar ou maior do que a dos antigos totalitarismos.
Para Huxley e seus companheiros, o homem poderia ser afastado de suas lealdades nacionais e religiosas se fosse submetido ao ensino de uma nova ética; se tivesse a oportunidade de vivenciar experiências bem-sucedidas de cooperação internacional e se, na esfera política, o modelo de governança atual fosse substituído por um conjunto de regimes internacionais temáticos, construídos e liderados por burocratas dotados de um conhecimento técnico especializado e ungidos pela autoridade da ciência. Essa tríade levaria à replicação e à expansão desse modelo de governança, que eventualmente acabaria por abranger todas as dimensões das relações sociais e tornaria os Estados nacionais obsoletos.
Essas e outras informações têm sido documentadas por estudiosos americanos e europeus há décadas, mas ainda são pouco conhecidas no Brasil. Dentre muitos estudiosos, o pesquisador Pascal Bernardin, autor do livro Maquiavel Pedagogo, publicado no Brasil pela Vide Editorial, é o mais recomendado a quem deseja se aprofundar no assunto.
Dono de uma obra construída com rigor e com coragem, Bernardin demonstra, para além de qualquer dúvida razoável, que a Unesco tem transformando decisivamente o papel das instituições de ensino, que não mais têm como objetivo prioritário a formação intelectual ou a transmissão de conhecimentos elementares, mas a implementação de um complexo projeto de engenharia social (“Psicologia Social”, na terminologia da agência) que visa formar “cidadãos globais” e, por meio de técnicas de manipulação psicológica, impor às sociedades de todo o mundo uma nova ética universal (a mesma de Julian Huxley), caracterizada pelo cosmopolitismo internacionalista, pelo materialismo, pelo cientificismo, pelo pacifismo radical e pela obediência servil a burocratas e tecnocratas das mais distintas áreas e instâncias.
Isto significa que muitos dos problemas com que nos deparamos hoje na área da educação tem suas origens em idéias e métodos sistematicamente defendidos e promovidos por cientistas e pedagogos da Unesco e implementados pelas inermes elites nacionais.
Da deterioração das capacidades linguísticas e matemáticas dos nossos alunos à ideologia de gênero; da uniformização dos currículos escolares à politização total da educação; da instrumentalização política da cultura à corrupção da ciência e da arte; todos os grandes problemas enfrentados pelo Brasil e por outras nações ocidentais estão vinculados, de algum modo, às ações da agência repudiada pelo presidente Donald Trump.
Responsabilidade nacional
A decisão do presidente americano, aliás, demonstra como as elites nacionais e os representantes políticos de uma nação podem frear esse processo. A Unesco e todo o aparato de governança global, integrado ou não ao Sistema ONU, só poderá substituir efetivamente os mecanismos de governança nacionais, se nossos representantes políticos consentirem em permanecer subordinados e subjugados a tecnocratas anônimos e inacessíveis à população nacional.
Pois, sem o apoio das elites nacionais, sem a nacionalização da educação, sem o controle político de todos os aspectos da vida humana, e sem a corrosão dos valores tradicionais, o projeto da Unesco poderá ser derrubado como um castelo de cartas – e, mais uma vez, os Estados Unidos assumiram a linha de frente e mostraram como se faz.
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