Uma pesquisa da ONG Fight the New Drug com 50 filmes pornográficos, eleitos por sorteio, mostram uma realidade desafiadora para a mulher de hoje: em 304 cenas de sexo, 88% continham episódios de violência física, dos quais 94% eram contra mulheres. E pior, em 95% das cenas pornôs as pessoas que sofriam violência não se rebelavam ou respondiam com prazer.
Esse levantamento é validado por outros, como o estudo da socióloga americana Gail Dines, “Pornland: como o pornô sequestrou nossa sexualidade”, publicado em inglês. Segundo os dados, 83% dos universitários consomem pornografia nos Estados Unidos, os quais são os que apresentam a maior probabilidade de cometer um estupro, caso tenham a segurança de que não serão penalizados por isso. A pesquisadora apontou ainda que 22 estudos efetuados entre 1978 e 2014, em sete países, associam o aumento do consumo da pornografia ao crescimento da agressão sexual e física, independentemente da idade. E quem mais sofre com isso? De acordo com Dines, os números mostram uma relação predominante entre a pornografia e a violência contra as mulheres.
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Desembarquemos agora no Brasil. Em um país em que a educação é deprimente – também no ensino particular, basta ver os últimos números do Ideb ou do Pisa –, o que tira a capacidade de crítica e de busca pelo melhor, a indústria do entretenimento é a sala de aula mais influente na formação – ou deformação – da população. E nesse cenário, é preocupante atestar que as letras das 50 músicas mais tocadas atualmente no Spotify e Youtube são de funk, não qualquer funk, mas daquele em que a mulher é descrita como submissa sexual do homem – mesmo que Anitta tente convencer do contrário (ela mesma objeto dessa indústria). E como pornografia gera violência, esse sucesso, fazendo uma analogia ao que sugere Dines ao combate da pornografia consumida indiscriminadamente nos EUA, é caso de “saúde pública”.
Para quem não conhece – já pedindo desculpas pelo conteúdo – estão presentes frases que mostram, por exemplo, o prazer (do homem) ao “socar” a genitália feminina sem parar (e que elas estariam fazendo fila para isso). Outra sugere para que o homem embebede a mulher, a estupre e a abandone na rua, após uma “surubinha de leve”. Uma terceira diz para a menina “sentar bem”, indicando como deve se portar no ato sexual. O “Vai Malandra”, de Anitta, que teve 64 milhões de visualizações menos de dez dias depois de seu lançamento em dezembro do ano passado, manda a mulher olhar o zíper do homem e colocar o bumbum ali, “posso dar para você, será que você aguenta?”, pergunta a letra.
Isso é empoderamento da mulher?
No livro “The Social Costs of Pornography”, editado pela Universidade de Princeton e sem tradução ainda para o português, a psicóloga e terapeuta familiar, Jill Manning (da ONG “Enough is enough”, que existe desde 1992 e não tem nada a ver com o atual movimento #Metoo, que utiliza a expressão “Enough is enough”) dedica um capítulo para elencar as consequências nefastas da pornografia para a mulher.
Manning, que atende no consultório mulheres que sofreram violência sexual, conta que, há alguns anos, ao ver uma menina com uma camiseta com a inscrição “futura estrela pornô” passou a pesquisar com mais afinco o motivo pelo qual trabalhar na indústria do sexo passou a ser considerado divertido ao invés de ser um ato desesperado e abusivo – como de fato é descrito pelas mulheres em confidências durante a terapia.
O resumo do que escreve depois é forte: a menina que não tem colo em casa, sem recursos intelectuais e afetivos para a autoestima, busca esse “colo” em outro lugar. A soma desse vazio com a facilidade de consumir pornografia cada vez maior faz com que essas meninas estejam dispostas a tudo para serem aceitas pelo grupo e pelos homens, confundindo isso, segundo a psicóloga, com “libertação” ou “empoderamento” – porém, no final, elas apenas se sentem degradadas, com a sensação de perder algo precioso por uma bagatela, ainda que, por vezes, não admitam isso.
“Atendo cada vez mais adolescentes do sexo feminino que toleram abusos emocionais, físicos e sexuais em relacionamentos rápidos ou no namoro, sentindo pressão para serem cada vez mais sensuais para atraírem os meninos, procurando ou até produzindo pornografia para agradar, para que seus namorados pensem que elas têm ‘mente-aberta’, tornando cada vez mais normal o abuso sexual feito pelos seus namorados, que querem reproduzir na relação os mesmos atos vistos em conteúdos pornográficos”, escreve a psicóloga.
Transpondo esse cenário ao funk de letra erótica, a junção de uma batida viciante unida a uma letra fortemente sexualizada, em que a mulher é um mero objeto nas mãos do homem, facilita essa tendência de utilizar a mulher como um mero meio de satisfação da lascívia masculina. E das meninas se submeterem a isso.
“As letras objetificam a mulher como uma espécie de presa sexual a ser abatida pela ingestão alcóolica e, depois, consumida pela conjunção carnal”, afirma André Gonçalves Fernandes, doutor em Filosofia da Educação, juiz da infância e da adolescência e professor da Unicamp. Essas músicas, continua o professor, “situam o potencial estuprador e a potencial vítima num limite muito próximo à atualização do crime, regado por um clima libertino de performance cênica (de um lado, meninas de roupas decotadíssimas e rebolando com quadris excessivamente expostos, de outro, escancarado frotteurismo) e por muitas drogas lícitas e ilícitas”.
Como o instinto sexual é um dos mais fortes para o ser humano, esse tipo de estímulo pode levar ao descontrole e a abusos cada vez maiores. Mark B. Kastleman, autor do livro “The Drug of New Millenium” (“A Droga do Novo Milênio”, em tradução livre, com o subtítulo “The Brain Science Behind Internet Pornography”) explica que, pelo mecanismo cerebral de recompensa fácil na pornografia, a plasticidade do cérebro muda da mesma forma quando alguém consome drogas. As exigências por prazer ficam cada vez maiores e os abusos cada vez mais requintados. Pessoas que nunca pensaram em abusar de alguém, de repente, se veem participando desse tipo de comportamento – e, como qualquer vício, sem conseguir se livrar facilmente dele.
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Não é só no Funk, mas...
Em defesa do Funk, sempre é bom lembrar que há letras inofensivas e, ao mesmo tempo, que a pornografia também é aplicada a outros estilos de música e de arte.
“Na verdade a cultura do machismo e do estupro não está presente somente nas letras de funk. Outros gêneros musicais também já fizeram uso de letras que retratavam uma normalização em relação à violência contra a mulher. Na minha opinião, o funk acaba sendo mais visado porque caiu no gosto da população em geral recentemente e porque usa uma linguagem mais corriqueira que se fala muito em sexo”, afirmou Marisa Gaudio, presidente da comissão OAB Mulher do Rio de Janeiro, em entrevista para a Gazeta do Povo janeiro desse ano.
Mas também não se pode negar que o ritmo nascido nas favelas cariocas têm disseminado muitas letras prejudiciais à mulher. E gera muito dinheiro.
Críticos não só das letras, mas também da qualidade musical do funk, apontam como o estilo é financiado por grandes veículos de mídia, já que o sexo gera lucro. “O pobre do morro consome funk por falta de alternativas; o rico da Zona Sul [do Rio de Janeiro], por sua vez, trata de justificar e chancelar intelectualmente essa produção chula e execrável por puro viés ideológico e autocensura politicamente correta”, dispara Thomaz Ferreira Martins, regente da OFSSP, compositor, instrumentista e bacharel em Composição e Regência pelo Instituto de Artes da Unesp.
Para Martins, o funk não é reflexo da realidade das favelas, mas, sim, “do abismo educacional brasileiro”. “O Brasil é um dos países com o pior sistema educacional do mundo. Há quarenta anos formamos uma nação de analfabetos musicais; as pessoas, particularmente os mais jovens, não têm ferramentas para avaliar criticamente qualquer obra musical e consomem o que quer que lhes seja empurrado goela abaixo. Esse é um fenômeno democrático e não ocorre somente nas favelas.”
Para ele, o termo “filhos do funk” é sinal dessa degradação. “A geração educada pelo funk já tem descendentes, os chamados “filhos do funk”, crianças sem pai, nascidas de relações sexuais grupais que ocorrem dentro dos bailes, geralmente com meninas menores. É uma tragédia. O funk, de fato, não é causa, mas sintoma da degradação humana que vivemos no Brasil atual”.
Quem critica essa visão sobre o funk de Thomaz Ferreira Martins, mas concorda que as letras contra as mulheres devem mudar, têm em comum com ele uma opinião: é preciso apostar na educação. E acrescentam que as discussões sobre limites poderiam partir do próprio mundo do funk, para atingir as mesmas massas que são influenciadas dessa forma por esse tipo de música. “O funk nos fornece muitas pistas e mesmo caminhos para superarmos essa sociedade socialmente atrasada e violenta em que vivemos. É preciso ouvir esse recado com ouvidos atentos e desarmados”, acredita Adriana Facina, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Seja como for, os relatos descritos por Manning no consultório, de mulheres que sentem vergonha, se autodepreciam e perdem o respeito por si mesmo e pelas pessoas do sexo oposto quando se deixam abusar tornam urgente alguma ação eficaz. Principalmente na família.
“Aqueles que reivindicam que a pornografia é um entretenimento inofensivo, uma expressão sexual legítima, claramente nunca se sentaram no consultório de um terapeuta com indivíduos, casais ou famílias que estão se recuperando dos efeitos devastadores desse material”, escreveu Manning.
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