Basta olhar para qualquer ranking de corrupção, de qualquer ano, para concluir: a Escandinávia é uma espécie de capital da transparência, tanto no setor público quanto no privado. Veja, por exemplo, a lista de 2018 da ONG Transparência Internacional, divulgado no dia 21 de fevereiro: a Dinamarca é o segundo país mais honesto do mundo, atrás da Nova Zelândia. A Finlândia e a Noruega, os terceiros. A Suécia, o sexto.
Quanto ao Brasil, em 2017 ficamos em 97º lugar entre os países mais corruptos, numa lista que geralmente inclui perto de 180 nações. Entre os países mais corruptos do planeta, apenas um é das Américas: a Venezuela ficou com a 11ª pior nota. Os demais estão na África e na Ásia. O Brasil caiu 17 posições em relação ao ano anterior. Culpa, talvez, do aumento da sensação de corrupção depois das denúncias da operação Lava Jato. “A Lava Jato pode ter aumentado a sensação de corrupção, apesar de a operação, em si, não indicar nem que a transparência aumentou, nem que diminuiu”, afirma Juliana Sakai, diretora de operações da ONG Transparência Brasil, que não tem relação com a Transparência Internacional.
O que são esses rankings? Como eles são calculados, se o próprio conceito de corrupção pressupõe a prática de atividades ilícitas (logo, escondidas) para ter acesso a dinheiro ou vantagens desleais? De fato, é dificílimo medir e comparar o comportamento moral de um país. O Banco Mundial mantém um banco de dados, com base em informações sobre os casos internacionais em que foram comprovadas movimentações bancárias superiores a US$ 1 milhão, e que caracterizam desvio de dinheiro. O Fórum Econômico Mundial também elabora um índice, atualizado anualmente e publicado dentro de seu Relatório de Competitividade Global.
Mas é a Transparência Internacional que elabora a lista mais influente. “É o trabalho mais utilizado no mundo todo, mesmo que um único indicador não dê conta de medir corrupção”, explica o professor Esteban Ortiz-Ospina, pesquisador da Escola de Governo Blavatnik, da Universidade de Oxford. A lista da ONG surgiu em 1995 e é resultado de entrevistas com membros de instituições internacionais e do cruzamento dos dados de uma série de estudos – na versão mais recente, foram analisados 12 trabalhos, e só entraram na lista final os países que foram citados em ao menos três deles. A ONG produz uma série de estudos, na verdade, incluindo Relatório Global de Corrupção, um Barômetro Global de Corrupção e um Índice de Pagamento de Propinas. Mas o mais amplo, aquele que se apoia em 12 estudos, tem um nome autoexplicativo: Índice de Percepção da Corrupção.
É isso que ele mede, a percepção de corrupção, mais do que os atos ilegais em si. “Não existe nenhuma forma segura de saber quanta corrupção de fato existe”, afirma o cientista político britânico Dan Hough, diretor do Centro para Estudos da Corrupção da Universidade de Sussex. “É difícil medir conceitos como corrupção democracia ou liberdade. Qualquer tentativa de qualificá-la esbarra em grandes desafios metodológicos”. Daí a escolha por medir percepção e comparar os resultados com outras nações. É uma opção válida, diz Esteban Ortiz-Ospina: “Existe uma clara correlação entre percepção de corrupção e a prática de atividades ilícitas”.
País intermediário
Existem também os estudos mais pontuais. Um deles, muito curioso, avaliou o comportamento dos diplomatas de diferentes países. Todos frequentam a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Até 2002, os veículos desses representantes oficiais de seus países, e também seus familiares, tinham imunidade diplomática. Podiam cometer infrações de trânsito e se recusar a pagar as multas. O levantamento, publicado em 2007 por dois professores do National Bureau of Economics, Raymond Fisman e Edward Miguel, compilava essas irregularidades entre 1997 e 2002 e analisava de quais nações eram os representantes que as cometiam.
Concluiu que, em geral, os diplomatas de países conhecidos por baixos índices de corrupção são os que menos cometem irregularidades de trânsito na cidade americana. Uma exceção notável era o caso da Colômbia, onde a percepção de corrupção era alta, mas o comportamento de seus representantes no exterior era exemplar. Na média de multas por diplomatas, os países que menos seguiam as regras de trânsito eram Eritreia, Egito, Chade, Sudão e Bulgária. Os mais disciplinados, que não registraram nenhum incidente, eram 22 países, um bloco heterogêneo que inclui Noruega, Japão, Reino Unido, Equador, Grécia e Jamaica.
Nestes diferentes rankings, o Brasil costuma ficar em posições entre o ruim e o mediano, como se vê no ranking da Transparência internacional. Por exemplo, no estudo das multas em Nova York, é o 30º com mais infrações cometidas, numa lista de 149 nações. No levantamento mais recente do Fórum Econômico Mundial, não existe um ranking de corrupção – a falta de transparência é apenas um entre muitos outros dados usados para formar um ranking global de competitividade. Nesse panorama, estamos na posição 80 entre 137 nações.
Impacto direto
Esses índices importam porque, em geral, o impacto da corrupção no desenvolvimento de um país é muito grande. “Em geral” porque, como lembra o professor Dan Hough, existem casos de países pouco transparentes que, ainda assim, conseguem crescer. “Alguns países pobres se tornaram ricos sem superar seus desafios no caso da corrupção. Em alguns países a corrupção arruína qualquer chance de desenvolvimento econômico. Em outros, a correlação não é tão óbvia. A China é um grande exemplo, assim como a Coreia do Sul”. Aliás, nenhum dos países do bloco BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) se sai bem quando o assunto é transparência.
“Países pobres são mais abertos à corrupção. É neles que o impacto de práticas ilícitas atinge a população numa proporção maior”, diz o cientista político Michael Johnston, professor da Universidade Colgate. “Em países mais ricos, a corrupção assume formas menos óbvias e pode se tornar entranhada no Judiciário e na política. É um tipo de atividade ilícita que atua dentro da própria instituição, e não contra ela como costuma acontecer nos países pobres”.
Na maior parte dos casos, a corrupção sistêmica reduz a confiança nas instituições e provoca o desperdício de dinheiro público. Desperdício gera ineficiência e, no limite, tira vidas. “Em países onde as pessoas são forçadas a pagar propina para ter acesso a serviços essenciais, como saúde e água, as estatísticas podem ser horríveis”, escreveu a educadora canadense Huguette Labelle, ela mesma autora de estudos para a Transparência Internacional. Um deles indica que, na comparação entre os países onde mais de 60% das pessoas se diz forçada a pagar suborno, a taxa de morte de mulheres durante o parto é oito vezes maior do que nos países onde menos de 30% das pessoas paga propinas.
“Isso significa 482 mulheres mortas, para cada 100 mil nascimentos, nos países mais corruptos, na comparação com 57 mortes para 100 mil onde há menos suborno”. Em síntese, diz ela, “menos propina significa menor mortalidade materna, melhores índices de alfabetismo entre jovens e melhor acesso a saneamento básico”.
A falta de transparência também gera uma situação de insegurança para os investidores. O Fórum Econômico Mundial pergunta, para empresas de todo o mundo, quais são os maiores impeditivos para fazer negócios com um determinado país. No caso do Brasil, em primeiro lugar, os pesquisados citam taxas e impostos. Em segundo, as leis trabalhistas restritivas (talvez esse item mude na próxima pesquisa, depois da reforma trabalhista). Em terceiro, o nível de corrupção. A falta de mão de obra preparada e com bons índices de educação vem só em décimo lugar – ou seja, não é percebida como um problema tão grave. Na Noruega, por sua vez, a corrupção é apenas o 14º problema mais citado, numa lista de 16.
Receita de sucesso
Mas por que um país é menos corrupto que outro? A empresa de análise de riscos Verisk Maplecroft oferece algumas respostas. Depois de examinar o grau de transparência e o desempenho das economias de 198 países entre 2012 e 2014, identificou que as áreas mais corruptas do mundo são a África subsaariana e o Oriente Médio. E apontou que economias em desenvolvimento são mais sujeitas à falta de transparência, em especial quando atuam em alguns setores especialmente sensíveis para a corrupção: petróleo, gás e mineração.
É possível, portanto, que os fatores histórico e cultural tenham influência, o que ajudaria a explicar por que vizinhos como Suécia e Finlândia são mais transparentes do que os também vizinhos Congo e Angola. Além disso, a estrutura do país também tem influência: os pesquisadores Richard Florida e Charlotta Mellander concordam que países dependentes do extrativismo são mais suscetíveis a práticas ilícitas, enquanto que economias baseadas na inovação e no capital humano tendem a ser mais transparentes. E indicam que os níveis de felicidade e de tolerância a etnias e diferentes orientações sexuais também são maiores em países menos corruptos. De fato, educação, tolerância e desenvolvimento humano parecem estar ligados à transparência.
O acesso livre a informações da gestão pública também está diretamente ligado à transparência. A legislação brasileira vem avançando na exigência de prestação de contas mais claras. O Ministério Público Federal mantém um sistema público de monitoramento para que a população acompanhe a agilidade dos estados e municípios em aderir às leis de transparência. Já é um avanço, mas o país precisa melhorar sua gestão.
“Existem duas questões, a corrupção e a má gestão”, diz Juliana Sakai, da Transparência Brasil. “Existe uma falta de preparo nos governos estaduais e municipais para lidar com uma série de questões ligadas a contratos e licitações. Quanto melhor for a gestão, maior a eficiência e a capacidade de combater fraudes”.
Nesses quesitos, os países escandinavos dão o exemplo. Em primeiro lugar, suas trajetórias ensinam que alcançar transparência dá trabalho e leva tempo – o primeiro rei dinamarquês a proibir o pagamento de propinas e o oferecimento de presentes a funcionários públicos foi Frederico 3º, que governou o país entre 1648 e 1670. O monarca também deu início a uma prática hoje centenária na região: a contratação de trabalhadores do governo por mérito, e não por indicação. Frederico deu o exemplo: seu próprio conselheiro de estado, responsável por realizar a reforma anticorrupção, Peter Griffenfeld, foi condenado à prisão perpétua por aceitar suborno e venda de cargos.
Ainda hoje, quem quer presentear um político precisa enviar o pacote diretamente aos conselhos locais. E a quantidade de cargos ocupados por indicação é quase zero. Quem assume encontra a mesma equipe de seu antecessor. Quando acontecem irregularidades, os envolvidos, incluindo quem sabia e não denunciou, são punidos com demissão, multa e prisão. Aliás, é mais difícil cometer irregularidades, porque o acesso aos gastos governamentais, na Dinamarca como na Finlândia ou na Suécia, é absolutamente transparente. E os cidadãos se acostumaram a usar essas ferramentas para avaliar e monitorar seus gestores.