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Ciência e saúde

Por que a homeopatia, mesmo sem comprovação, ainda tem espaço no Brasil?

Farmacêutica manipula medicamentos para fabricação de remédio homeopático em Curitiba. | Rodolfo Buhrer / Agência de Notí/Rodolfo BUHRER
Farmacêutica manipula medicamentos para fabricação de remédio homeopático em Curitiba. (Foto: Rodolfo Buhrer / Agência de Notí/Rodolfo BUHRER)

O artigo “A Homeopatia é uma Farsa”, publicado no início da semana pelo Jornal da USP — principal órgão oficial de divulgação da Universidade de São Paulo — e assinado pelo biólogo Beny Spira, professor da Universidade, traz finalmente ao Brasil a disputa pública entre cientistas e homeopatas que, fora do país, grassa no meio acadêmico, na imprensa e entre os formuladores de políticas públicas há, pelo menos, 12 anos.

Embora a convivência da homeopatia com as ciências — principalmente biologia e química — já fosse desconfortável há mais de um século, a primeira salva a apontar guerra aberta veio em 2005, quando o periódico médico britânico The Lancet publicou o editorial “The End of Homeopathy” (“O Fim da Homeopatia”), no qual a prática é condenada nos termos mais duros – “a atitude de liberalidade politicamente correta em relação à homeopatia já durou tempo demais”, diz um trecho.

“Chegou a hora de os médicos serem corajosos e honestos com seus pacientes quanto à ausência de benefício da homeopatia”, prossegue. 

O editorial elaborava as conclusões de um estudo, publicado na mesma edição do periódico, que comparou 110 testes de medicamentos homeopáticos a 110 testes de medicamentos tradicionais, e concluiu que os resultados positivos dos testes homeopáticos, quando encontrados, deveriam ser atribuídos ao efeito placebo — o nível de recuperação esperado por conta da mera expectativa de melhora, e do conforto psicológico de crer-se tratado, e que é independente da eficácia objetiva da medicação. 

Efeito placebo

Más notícias acumularam-se nos anos seguintes: em 2010, ocorreu a divulgação de um relatório elaborado pela Comissão de Ciência e Tecnologia do Parlamento Britânico concluindo que o sistema de saúde pública do Reino Unido deveria “parar de financiar a homeopatia”. “A base de evidências mostra que a homeopatia (...) não funciona para além do efeito placebo”, aponta o trabalho. 

Em 2015, O Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (NHMRC, na sigla em inglês) da Austrália, depois de avaliar 57 revisões sistemáticas de estudos sobre 68 diferentes condições médicas, num total de 176 testes individuais, determinou que a homeopatia não produz “efeitos convincentes discerníveis para além do placebo”. Mais recentemente, em novembro do ano passado, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, uma agência federal de proteção ao consumidor, determinou que os medicamentos homeopáticos incluem no rótulo a informação de que não há prova válida de que realmente funcionam. 

A reação dos homeopatas — que, dependendo da legislação de cada país, podem ou não ter formação em Medicina — incluiu ataques à metodologia dos estudos (feita, por exemplo, pelo Instituto de Pesquisa Homeopática da Austrália e também em respostas aos trabalhos publicados em The Lancet) e insinuações sobre eventuais motivações escusas dos críticos, mas as defesas não foram consideradas convincentes pela comunidade científica, ao menos não fora dos círculos já previamente comprometidos com os princípios homeopáticos. 

Simpatia do príncipe

No mundo de língua inglesa, toda essa discussão vem sendo travada em público, por meio da imprensa, e chega a gerar manchetes acaloradas em jornais como o britânico “The Guardian”. No Reino Unido, apenas a pressão de membros da Família Real — o príncipe Charles é um fervoroso defensor da homeopatia — salvou a prática de ser excluída do sistema público de saúde. A executiva-chefe de saúde da Inglaterra, Sally Davies, já se referiu à homeopatia como “lixo” e desperdício de dinheiro público

No Brasil, onde a homeopatia é especialidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 1980, no entanto, a grande imprensa nunca deu destaque ao assunto, e os formuladores de políticas públicas, nas áreas de ciência e saúde, parecem não ter tomado conhecimento das conclusões científicas da última década e meia: a agência de fomento à pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp, segue financiando estudos sobre homeopatia.

No ano passado, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) destinou R$ 390 mil para financiar estudos sobre “insumos homeopáticos”. E o Ministério da Saúde celebra, todo ano, o Dia da Homeopatia, em 21 de novembro. 

Politicamente correto

O artigo de Spira, que de várias maneiras representa um paralelo do editorial da Lancet de 2005, ao ser publicado num veículo como o Jornal da USP, talvez quebre entre nós a “a atitude de liberalidade politicamente correta” em relação à homeopatia, no meio médico e acadêmico, que o periódico britânico já condenava há 12 anos. Mas, afinal, o que leva os cientistas a se referir à homeopatia em termos tão fortes, como “fraude”, “lixo”, e a pedir seu “fim”? 

O livro “Homeopathy: The Undiluted Facts” (“Homeopatia: Os Fatos Sem Diluição”, em tradução literal), do médico e pesquisador alemão radicado no Reino Unido Edzard Ernst, indica quatro pontos cruciais por trás da condenação científica da prática: mecanismo de ação, eficácia, impacto econômico e análise de riscos e benefícios. 

Mecanismo de Ação:

o livro de Ernst, o artigo de Spina e inúmeras outras críticas apontam o fato de que não há um meio plausível de a homeopatia funcionar melhor que um placebo. A homeopatia se baseia em dois princípios, o da diluição e o dos similares. O dos similares postula que uma condição pode ser curada pela administração ao paciente de uma substância que, numa pessoa saudável, cause sintomas análogos aos da doença. “Isso pode se aplicar em algumas circunstâncias, mas não é uma lei geral da Natureza”, aponta Ernst. 

Mais problemático é o princípio da diluição, segundo o qual o poder de cura de uma substância se amplia à medida que a solução que a contém é diluída. Há diluições usadas em homeopatia em que a probabilidade de haver uma única molécula sequer do princípio ativo no preparado dado ao paciente é, efetivamente, zero. Essas são as chamadas “soluções ultramoleculares”. Não há análise científica conhecida capaz de distinguir uma solução ultramolecular de água pura. 

Em 2010, o ganhador do prêmio Nobel de Medicina Luc Montagnier tentou ressuscitar a ideia desacreditada da “memória da água” — de que moléculas de água poderiam preservar propriedades de substâncias com as quais haviam tido contato no passado — mas seu trabalho foi duramente criticado. Há homeopatas que apelam para princípios de nanotecnologia para tentar explicar os supostos efeitos ultramoleculares, mas “todas as tentativas falham em convencer cientistas críticos”, escreve Ernst. 

Eficácia:

levantamentos amplos, como os já citados estudos da Lancet e do NHMRC, mostram que a homeopatia não é mais eficaz que um placebo. Homeopatas apontam, no entanto, que nem toda a literatura é negativa: há resultados favoráveis à homeopatia. Numa situação dessas, “existe a tentação de selecionar só o que é favorável”, diz Edzard Ernst. Mas a preponderância da evidência, insistem os críticos, é negativa. No prefácio ao livro de Ernst, o responsável pelo estudo australiano, Paul Glasziou, nota que, num grande volume de estudos, alguns produzirão falsos resultados positivos por puro acaso. 

Impacto Econômico:

“Remédios homeopáticos geralmente são muito mais baratos que drogas convencionais e isso leva alguns homeopatas a alegar que se pode economizar dinheiro usando mais homeopatia”, escreve Ernst, que classifica o argumento de “ingênuo e enganoso”. Ele cita um estudo envolvendo mais de 44 mil pacientes que haviam optado ou por se tratar com homeopatia ou por meios convencionais, e que determinou que, após 18 meses, os pacientes de homeopatia tinham gastado mais dinheiro. “Em todos os diagnósticos, os custos foram mais altos para os pacientes que escolheram homeopatia”. 

Riscos e Benefícios:

“A homeopatia tem uma imagem de ser livre de riscos”, escreve Ernst. “Mas isso pode não ser verdade”. Ele cita, entre os fatores de risco, diluições imperfeitas, em que a matéria prima original, tóxica, permanece presente; e a insistência, entre alguns homeopatas, de que o tratamento homeopático não deve sofrer interferência de medicamentos comuns — o que pode levar pacientes a abrir mão de tratamentos eficazes. Em outubro do ano passado, dez crianças morreram nos Estados Unidos, e centenas ficaram doentes, depois de consumir um preparado homeopático contaminado. E em 2009 um casal australiano foi preso por insistir em tratar um bebê de 9 meses exclusivamente com homeopatia, o que levou à morte da criança. 

“Os riscos da homeopatia podem ser pequenos”, escreve Ernst. “Mas existem. E como, de acordo com os mais completos estudos, a eficácia é duvidosa, uma análise de riscos e benefícios da homeopatia dificilmente trará uma conclusão positiva”. 

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