Um consumidor entrou com ação na Justiça da Bahia por ter sido lesado na quantia de R$ 2,06 (sim, dois reais e seis centavos). O autor do processo foi cobrado indevidamente pela pimenta e pelo caruru quando comprou um abará, um dos pratos mais típicos da culinária baiana. Assim, exigiu a devolução da quantia paga, bem como a compensação por danos morais sofridos, pedido que foi acolhido pelo juízo e arbitrado em R$ 300.
O caso é simbólico para explicar os problemas do Judiciário brasileiro: apesar do ganho de causa, foi movimentada toda a máquina do Judiciário, a um custo estimado em mais de 1.500 vezes o valor de seu dano, tudo financiado pelos pagadores de impostos baianos.
Casos como esse não são exceções, e ajudam a abarrotar o Judiciário brasileiro, onde atualmente tramitam cerca de 80 milhões de processos, segundo o relatório Justiça em Números de 2018. A proporção de processos judiciais no Brasil para cada mil habitantes é quase cinco vezes superior à da Alemanha, Suécia, Áustria e Israel. Em virtude de tamanha judicialização, a taxa de congestionamento nos tribunais é superior a 70%, fazendo com que ações simples demorem anos para serem julgadas. O Tribunal de Justiça da Bahia, onde foi decidido sobre a pimenta de 50 centavos e o caruru de R$ 1,56 é, justamente, o tribunal que registrou a maior taxa de congestionamento do país em 2016: 83,9%. Esse panorama faz com que responder a uma ação no Brasil seja um verdadeiro paraíso, ao passo em que quem a move vive um arrastado pesadelo.
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Entre os indicadores analisados pelo ranking de liberdade econômica, elaborado pela Heritage Foundation e publicado com exclusividade pela Gazeta do Povo no Brasil, consta a efetividade Judicial. No quesito, o Brasil possui um score de apenas 51,7, apenas constatando em números a ineficiência conhecida por todos que já dependeram de algo na Justiça brasileira.
Para muitas autoridades, como o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, a lentidão da Justiça se dá pela falta de recursos. Contudo, em 2017 a despesa total do Judiciário foi de R$ 90,8 bilhões. Trata-se do maior orçamento com Judiciário por habitante no Ocidente, excetuando El Salvador — um país subdesenvolvido da América Central menor que Sergipe. O Brasil gasta 1,3% do PIB com o Judiciário, muito além de outros países, como Espanha (0,12%), Argentina (0,13%), Estados Unidos (0,14%), Itália (0,19%) e Alemanha (0,32%).
A despeito de tantos gastos e da garantia constitucional de acesso à Justiça, há um paradoxo em que há muita litigância e pouca confiança na instituição: apenas 42% dos brasileiros confiam no Poder Judiciário.
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Muitos juristas afirmam que esse é um problema cultural brasileiro, lembrando alguns economistas da década de 1980 que, diante da falta de melhores diagnósticos para a hiperinflação, garantiam se tratar de uma questão cultural do país. Como demonstrado pelo Plano Real, em 1994, toda a problemática se dava por problemas institucionais. É o mesmo caso do Judiciário: tamanha judicialização reflete incentivos institucionais que levam os brasileiros a considerar mais vantajoso litigar do que buscar outras formas de resolução de conflitos.
Advogado e professor do doutorado no UniCEUB, Ivo Gico Jr., que pesquisa a questão há anos, é categórico. “Não há evidências empíricas que indiquem a existência de uma cultura do litígio no Brasil. Trata-se de uma explicação mágica para quem não quer encarar os verdadeiros problemas da justiça brasileira”.
A professora do Insper Luciana Yeung, que analisa o Judiciário brasileiro há mais de uma década, endossa. “É um caminho muito fácil lavar as mãos e não fazer nada. Toda vez que se diz que a culpa é da cultura, a implicação é ‘nada pode ser feito, vamos morrer assim’. Os incentivos — diretos e indiretos, materiais ou não materiais — contam integralmente", diz. "Tenho dificuldades imensas de aceitar que o brasileiro tem uma cultura mais litigante do que o alemão, o francês, o português, e o espanhol. Mesmo querendo acreditar, não somos tão especiais assim em comparação com outras culturas”.
Vale ressaltar que, segundo o Conselho Nacional de Justiça, mais da metade dos processos em tramitação no país se referem a execuções fiscais. A Fazenda Pública é a principal litigante do país, o que restringe a capacidade jurisdicional para o cidadão comum. Dessa forma, boa parte da eficiência judicial é comprometida com a própria incapacidade estatal de cobrar seus impostos.
Todavia, casos como o do “abará” são simbólicos, já que ajudam a explicar os incentivos que estão por trás de boa parte da outra metade dos processos judiciais que abarrotam o sistema brasileiro de Justiça.
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Yeung atesta que, quando o Judiciário é excessivamente usado por litigantes como este, litigantes de causas mais urgentes têm desincentivos para recorrer à Justiça, haja vista que ela se torna morosa. “Com o tempo, somente litigantes de casos como o da notícia permanecem no sistema judicial (porque podem esperar, já que não têm nada a perder). A Justiça tem limites, tanto de recursos humanos quanto materiais, e não dá para atender todos de maneira infinita. Então, alguém será deixado de fora, mesmo que voluntariamente. Há um efeito de seleção adversa”.
Já Gico Jr. impõe outras questões: “uma ação judicial custa cerca de R$ 3.500. A sociedade deveria estar gastando R$ 3.500 para custear um problema de 2 reais?”. E mais: “é razoável alguém, a título de danos morais, ganhar 150 vezes o valor do prejuízo que teve? Ao dar esse tipo de decisão, incentiva-se o litígio de valores irrisórios, já que litigar passa a ser muito lucrativo, em especial no Juizado Especial, em que há gratuidade”.
A concessão de gratuidade da Justiça pode ser um dos fatores que explicam a judicialização, e ela é feita indiscriminadamente pelos magistrados brasileiros. Há casos simbólicos, como o de um desembargador cuja renda é maior que 99% da população brasileira (e é custeada por ela), além de ser representado por um dos escritórios mais caros do país, e que mesmo assim contou com votos favoráveis para não ter de pagar as custas processuais para ingressar com um recurso. Em uma terra em que magistrados consideram que nem a elite do funcionalismo público possui renda suficiente para custear as despesas judiciárias, mesmo entre os raros casos de quem as paga, não se arca com os valores integrais, uma vez que as despesas processuais são subsidiadas com impostos.
Yeung não tem dúvidas de que esse é um dos fatores que incentivam a judicialização: “mesmo modelos básicos de análise econômica do processo e da litigância — como aqueles propostos pelos professores Robert Cooter e Daniel Rubinfeld na década de 1970 — mostram que o custo de se ter acesso à justiça entram no cálculo”, referindo-se à tomada de decisão dos agentes antes de escolherem ingressar com ações. “Outro motivo que impacta diretamente é a probabilidade do ganho de causa. Se existe a percepção de que há grandes chances de ganho, é claro que vai haver incentivo para se judicializar”.
Dentro da ficção do sistema judicial brasileiro, em que quase ninguém paga pelo acesso a ele, o custo de oportunidade de se ingressar com a ação passa a ser muito baixo. Sem praticamente nenhum ônus, resta apenas a chance de ganhar alguma coisa ao ajuizar ações. Uma legislação ambígua, juntamente a decisões judiciais que não respeitam precedentes de tribunais superiores, completam a tragédia do nosso Judiciário.
Gico Jr. possui um trabalho publicado na Economic Analysis of Law Review com um título sintomático: “De Graça, até Injeção na Testa: análise jus-econômica da gratuidade de Justiça”. A obra analisa a estrutura teórica de incentivos dos litigantes e a conclusão é que, a despeito da gratuidade da justiça ser uma solução possível para garantir o livre acesso ao Judiciário dos mais pobres, como ela é concedida de forma irrestrita, a gratuidade pode induzir à litigância frívola e temerária.
Efeito contrário
Diante disso, para haver melhoria institucional no Judiciário nacional é necessário mudar os incentivos que hoje existem para a judicialização.
Para tanto, Yeung atesta que “na ânsia de se fazer ‘justiça’, o Judiciário acaba tomando decisões ‘míopes’. Só que nessas ocasiões, os juízes não percebem que acabam gerando o efeito contrário, que o resultado seguinte é, justamente, essas pessoas que eles queriam inicialmente proteger acabarem sendo as mais prejudicadas por suas decisões. Os juízes podem concordar ou não em basear suas decisões no consequencialismo, mas a verdade imutável é que suas decisões geram consequências. Superproteger o consumidor, o trabalhador, e o ‘socialmente mais fraco’ faz com que, em pouquíssimo tempo, todos os incentivos de pessoas, empresas e organizações sejam direcionados à tomada de medidas defensivas contra estes indivíduos. No final, são eles que pagam o maior preço”.
Já Gico Jr. acredita que as melhorias do Judiciário passam necessariamente por dois fatores principais: aumento de segurança jurídica e soluções tecnológicas. “A segurança jurídica é o primeiro passo: quanto mais previsíveis as decisões judiciais, menor o número de litígios, na medida em que as pessoas saberão como o judiciário se comportará, então vão buscar adequar suas condutas a possíveis decisões judiciais”.
Para ele, o uso de inteligência artificial e automação de todas as tarefas que forem possíveis, se bem utilizados, são ferramentas que renderão frutos ainda mais revolucionários que a segurança jurídica. “Não há razão para citações não serem automáticas, para decisões acerca da ordem de julgamento não serem feitas por robôs que estimem quando o caso for mais complexo ou menos complexo. Quando nós automatizarmos o máximo de tarefas e atividades dentro do Judiciário, sendo isso combinado com segurança jurídica, teremos um aumento de produtividade substancial. Do ponto de vista tecnológico, nosso sistema judicial ainda está na década de 20 do século passado. Precisamos avançar 100 anos em 5: automatizar tudo, o máximo possível”.
Salienta-se ainda que a nova administração da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), liderada por Luciano Timm, está comprometida com a produção de um ambiente de desestímulo ao descumprimento da lei e no qual somente casos residuais cheguem ao Judiciário. Esse diagnóstico foi apresentado no último encontro do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), que ocorreu na última semana em Brasília.
A Senacon está investindo na divulgação de ferramentas de mediação entre consumidor e empresas a fim de evitar judicializações, como a ferramenta consumidor.gov.br, que serve para cidadãos e empresas resolverem de forma mais ágil suas questões.
Avanços, mas nem tanto
Em busca de melhorar a eficiência do Judiciário, foi aprovado em 2015 o novo Código de Processo Civil. Ele trata de todas as regras que permeiam os processos, como os prazos que as partes devem seguir e o rol de recursos possíveis.
Gico Jr., que trata do tema em seu livro “Princípio da Eficiência: conteúdo e aplicação - análise econômica do processo civil”, ainda em produção, analisa que o novo diploma processual em geral foi positivo: “tornou um pouco mais eficiente, no sentido do processo avançar de forma mais célere, mas essa melhora não se deu de forma substancial. Vejo-as como melhorias marginais”.
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Sua análise é a de que parte majoritária do problema não é a lei, mas como os administradores judiciais (juízes e auxiliares da Justiça) gerenciam o processo. É muito mais um problema de administração do que jurídico.
“Não é o processo civil que vai salvar o Judiciário. Nós precisamos de um choque de gestão imediato e usar as tecnologias que estão aí para massificar o acesso à Justiça. A única forma de fazê-lo, democratizando-a verdadeiramente, é fazer uso dos mesmos mecanismos utilizados por todas as empresas para difundir produtos e serviços: inteligência artificial e automação. Esse é o futuro, e a única saída capaz de fazer com que o Direito efetivamente alcance todo mundo”, conclui.
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