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Consolidada a certeza de que a arbitragem aplica-se a controvérsias em que a administração pública seja parte, necessário o exame de seus aspectos primordiais. Este artigo versará a respeito da colisão entre publicidade administrativa e confidencialidade dos procedimentos arbitrais. A bem da verdade, ele se prestará a demonstrar que não existe tal oposição. O princípio da publicidade dos atos, processos e contratos administrativos convive muito bem com o sigilo próprio da arbitragem. O que se faz necessário é a eventual gradação – subjetiva, objetiva e cronológica – da publicidade e do sigilo. 

Ao contrário dos processos judiciais, em que a publicidade é a regra, nas arbitragens, ela é a exceção. Nesses procedimentos privados, pautados pela autonomia da vontade das partes, a premissa é a do sigilo, cuja matriz é a livre escolha dos envolvidos em não se submeter à jurisdição estatal. Tal opção à arbitragem – que necessita de ser expressa – faz com que aquilo que era sigiloso no negócio jurídico originário assim persista quando da solução de eventuais controvérsias por terceiros. As partes posicionam o bom andamento dos negócios acima dos litígios e impedem que o próprio conflito seja levado a conhecimento público. 

Por isso que aos árbitros é estabelecido o dever de discrição (Lei 9.037/1996, art. 13, § 6º). Trata-se de mandamento legal, pouco importa quem sejam as partes – câmaras ou tribunais arbitrais. Os árbitros não dispõem de escolha quanto ao silêncio. Veja bem: discrição é qualidade daquele que é comedido e, por isso, não revela segredos de outrem. Essa obrigação legal, no mais das vezes, é reforçada nos regulamentos das câmaras de arbitragem. Isso faz com que, ao acolherem esta ou aquela câmara, as partes envolvidas prestem aderência a tais regulamentos e os incorporem ao seu relacionamento no curso da arbitragem, expandindo a determinação normativa quanto à reserva. 

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Isso faz com que o dever cometido aos árbitros abranja também as partes, advogados e terceiros participantes. O importante é que as câmaras, os árbitros e todos os demais envolvidos (secretários, peritos, testemunhas, funcionários, etc.) cumpram à risca o dever de confidencialidade – a não ser que as partes decidam expressamente em sentido contrário. Aqui está o dever de preservação objetiva da arbitragem como instituto jurídico que preza pela discrição. Tanto isso é verdade que o art. 189 do Código de Processo Civil (CPC) blindou o procedimento arbitral, caso levado ao Poder Judiciário, excetuando a publicidade (“Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) IV – que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.”). 

Mas note-se que tal confidencialidade não é absoluta. Exceção feita ao indeclinável dever dos árbitros, ela pode ser superada por manifestação de vontade unânime das partes ou através de previsão normativa que excepcione a obrigação de sigilo.

Por exemplo, companhias abertas tem o dever de divulgar informações sobre fato relevante assim qualificado pela Instrução CVM nº 358/2002: “qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembléia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: I - na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; II - na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; III - na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados” (art. 2ª). Isso inclusive no que respeita a “procedimento administrativo ou arbitral que possa vir a afetar a situação econômico-financeira da companhia” (Instrução CVM 358/2002, art. 2º, parágrafo único, inc. com redação dada pela Instrução CVM nº 590/2017). Em tais casos, tanto o contrato quanto o estatuto da câmara e a vontade das partes são atenuados. 

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Esse é o cenário da arbitragem entre pessoas privadas, que se submete a determinadas especificidades quando nela ingressam os poderes públicos na condição de parte. Afinal, a Administração Pública brasileira deve obediência ao princípio da publicidade, de forma ativa (dever de levar a conhecimento público os atos e fatos administrativos) e passiva (dever de prestar as informações requeridas pelo público). Como fica, portanto, a aplicação desse princípio nos procedimentos arbitrais? Bem vistas as coisas, pouco ou nada se altera. 

Isso porque a publicidade é subjetiva e diz respeito à esfera própria dos órgãos e entidades vinculados aos poderes públicos. Estes – e não os tribunais arbitrais nem, muito menos, os próprios árbitros – têm de cumprir deveres relativos a tornar públicos os atos e fatos da arbitragem. Publicidade essa que deve atender às circunstâncias da controvérsia. Afinal de contas, também na esfera pública, a publicidade não é absoluta. Pode ser derrogada e/ou suspensa em vista do conteúdo da informação e respectivas repercussões sociais, políticas e administrativas. 

Com efeito, apesar de o sigilo, previsto também na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), ser exceção a documentos, atos e fatos pertinentes a negócios públicos, fato é que pode existir e, uma vez definido, deve ser respeitado em nível máximo. Isso, inclusive, quanto a informações e documentos produzidos ou manuseados pelo próprio Estado – pouco importa perante quais pessoas ou instituições. Todas as informações que sejam sigilosas necessitam de ser protegidas ativamente, também em sede de procedimentos arbitrais. Esta percepção não é única da arbitragem, mas faz parte do cotidiano dos poderes públicos. 

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Por exemplo, nada obstante a natural publicidade dos órgãos de controle, o Tribunal de Contas da União editou a Resolução-TCU nº 254/2013, por meio da qual disciplina o resguardo de informações específicas – como, por exemplo, aquelas blindadas pelo “sigilo fiscal, bancário, de operação e serviços no mercado de capitais, comercial, profissional e industrial, bem assim aquelas envolvendo segredo de justiça e denúncias”. Tal como os órgãos de controle externo – que se submetem à dupla incidência do princípio da publicidade (de seus atos e dos da administração controlada) – podem atenuar, a depender do caso concreto e respectiva fundamentação, o livre acesso às informações, o mesmo se dá nas arbitragens. 

Assim, pode-se falar em níveis, subjetivos, objetivos e cronológicos, quanto à confidencialidade na arbitragem. Uma coisa é o sigilo cometido legislativamente aos árbitros; outra, é o dever de a Administração, na condição de parte no procedimento, cumprir o dever de publicidade. Também o conteúdo das informações pode se submeter a graus distintos de publicidade: aquelas que são blindadas por sigilo anterior à própria arbitragem, assim permanecerão para todos os envolvidos e terceiros. O mesmo se diga quanto à cronologia da publicidade: em vista da privacidade do procedimento, não pode ser de acesso imediato a terceiros – mas, uma vez proferida a sentença, nada obsta que atas e gravações das sessões sejam disponibilizadas ao público. Cada caso definirá as peculiaridades e os níveis – subjetivo, objetivo e cronológico – da confidencialidade, que precisará constar de decisão fundamentada (preferencialmente, a constar desde a ata de missão). 

O mais importante é tomarmos consciência de que a confidencialidade não se destina a proteger nem as partes nem os árbitros nem os tribunais arbitrais nem as câmaras institucionais. Visa à defesa do próprio instituto da arbitragem. Assim precisa ser compreendida e preservada.

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