Sob qualquer ponto de vista, Wang Hailei, de 36 anos, pertence a uma das gerações mais privilegiadas da história chinesa. Criado sem irmãos e sob a política chinesa do “filho único”, ele recebeu atenção exclusiva durante a infância, foi mimado com presentes como jogos de computador, livros sobre artes marciais e aulas de música.
Porém hoje, ele já não se considera mais uma pessoa afortunada. Enquanto passeava por uma livraria da cidade em um sábado recente vestindo um casaco de peles e sapatos de camurça, ele afirmou que sua geração é “patética” e “miserável”, desconhecedora do amor familiar e extremamente autocentrada.
“Fomos sacrificados por um erro político. Nós fomos usados”, afirmou Wang, fundador de uma startup virtual.
Muitos chineses comemoraram a decisão tomada pelo Partido Comunista em outubro, que permite que os casais tenham dois filhos depois de mais de três décadas da política do filho único, o que representa uma rara vitória dos direitos humanos em um país onde as liberdades civis são rigorosamente controladas.
Mas para alguns dos mais de 150 milhões de jovens que cresceram como filhos únicos, o anúncio reavivou velhos sentimentos de isolamento e arrependimento, de acordo com entrevistas com mais de 20 pessoas.
A imprensa chinesa já apelidou o grupo de “a geração solitária”.
Nos disseram que tínhamos o rei na barriga. Mas ninguém nos contou que seríamos a única geração a ter de encarar sozinhos esta obrigação.
“Eles têm sorte e azar. A política do filho único acabou em 2015, mas a solidão dessa geração nunca vai acabar”, afirma um artigo recente no Sina.com, site chinês de notícias.
Algumas pessoas reagem com frustração quando encaram a realidade de que sua geração será uma espécie de aberração histórica, um desvio de 37 anos. Já outras pessoas enfrentam com dificuldade a tentativa de dar sentido à sua participação involuntária em um dos maiores experimentos sociais da história da humanidade.
“Em cinco mil anos de história chinesa, seremos a única geração formada exclusivamente por filhos únicos. A política causou muitos problemas”, afirmou Wang Yunpeng, engenheiro de 35 anos que vive em Xi’an, no noroeste da China.
Liu Zhe, uma caixa de supermercado de 33 anos em Xangai afirmou que “nossas vidas foram ditadas por uma política arbitrária e em circunstâncias que estavam completamente fora do nosso controle. Às vezes me pergunto se isso é justo”.
As pessoas que estão chegando à idade adulta agora vão formar a espinha dorsal da sociedade chinesa em um momento de mudanças profundas, à medida que o número de idosos cresce rapidamente e a economia enfrenta novas dificuldades, incluindo a falta de mão-de-obra.
Em inúmeras entrevistas, os integrantes da geração do filho único afirmam que sempre ouviram que faziam parte de uma das gerações mais abençoadas da história da China, tendo fugido da pobreza e dos conflitos brutais enfrentados por seus pais e avós, mas que com o passar do tempo perceberam que teriam que enfrentar sozinhos o fardo de cuidar dos filhos e dos pais e sogros idosos, sem a ajuda dos irmãos.
“Nos disseram que tínhamos o rei na barriga”, afirmou Zhang Cheng, 22 anos, universitário de Pequim. “Mas ninguém nos contou que seríamos a única geração a ter de encarar sozinhos esta obrigação”.
Depois que a mudança na política do filho único foi anunciada no fim de outubro, os filhos dessa geração retornaram a um velho pensamento: como seria a vida se tivessem um irmão ou uma irmã?
Li Luochen, de 26 anos, que trabalha no setor de marketing de uma empresa de videogames, contou que quando era criança gostava de receber a atenção exclusiva dos pais. Mas agora que é adulta e os pais insistem constantemente para que ela tenha filhos, ela desejaria ter um irmão a quem recorrer.
A política do filho único acabou em 2015, mas a solidão dessa geração nunca vai acabar.
“Ser filha única é muito complicado”, afirmou em um café de Pequim. “Toda menina gostaria de ter um irmão mais velho”. Muitas pessoas dizem que seria bom ter um irmão mais velho para ajudar caso entrassem em alguma briga.
Em postagens de redes sociais, alguns chineses pedem para que o governo se desculpe ou encontre algum tipo de compensação para o fato de eles terem sido impedidos de ter irmãos. Outras pessoas dizem que nada pode ser feito para diminuir as dificuldades.
Alguns especialistas ainda defendem a política, que foi criada em resposta ao temor do impacto da superpopulação sobre os recursos naturais.
“É verdade, esse foi um grande experimento social, mas o que mais poderia ter sido feito?”, afirmou Tang Kun, de 33 anos, professor assistente de Saúde Global na Universidade de Pequim.
Agora que muitos integrantes da geração dos filhos únicos chegaram à idade de ter filhos, eles enfrentam com dificuldade a decisão de ter ou não um segundo filho, em vista do alto custo de criá-los nas cidades chinesas. Eles temem que a economia os force a impor aos filhos o mesmo isolamento que sofreram por conta da política pública.
“Não posso dar um irmãozinho ao meu filho, custa caro demais”, afirmou Liu Jia, de 27 anos, funcionária de um salão de beleza em Pequim. “Mas posso tentar compensar isso dando mais amor e passando mais tempo com ele, saindo mais para passear para que ele se sinta menos solitário”.
Outros dizem que não veem a hora de ter mais de um filho, para que não sintam a mesma solidão durante a infância.
“Eu queria tanto um irmãozinho quando era criança”, afirmou Shi Jiandong, de 22 anos, aluno da Universidade Fudan, em Xangai. “Não quero que nossos filhos sofram com o mesmo isolamento que nós”.
Huang Haitao, de 30 anos, executivo de planejamento na Xinhua, a agência estatal de notícias, em Pequim, contou que teme que seus filhos se sintam ainda mais isolados, já que não terão nem tios, nem primos para brincar.
“Eu tinha uma dúzia de primos que eram como meus irmãos e irmãs. Minha filha vai ser muito mais solitária do que eu fui. Ela não vai ter nada disso.”
Wang, o fundador da empresa virtual, afirmou que muitas famílias chinesas haviam se esquecido de que ter muitos filhos era uma parte normal da vida. Um provérbio chinês diz que ter um filho ou uma filha é o que completa a família.
“As famílias têm que ter mais de um filho; é assim que deve ser. Minha filha não sabe o que é um tio ou uma tia. Não quero que ela também não saiba o que é ter um irmão.”
Deixe sua opinião