Há 10 anos, um dos mais ferozes furacões da história engolfou o sul dos Estados Unidos, atingindo em cheio a cidade de Nova Orleans. Conhecida pelo jazz, a metrópole, localizada entre as águas do Lago Pontchartrain e o famoso Rio Mississippi, teve seus diques rompidos pelo vento de até de 230 km/h.
Veja o comparativo feito pela reportagem em visita em 2005 e agora
Confira um vídeo sobre a reconstrução de Nova Orleans
Cerca de 1,8 mil pessoas morreram, e os prejuízos foram estimados em US$ 100 bilhões. À época, muitos acharam que a cidade deveria ser abandonada para sempre.
Passada uma década, Nova Orleans reviveu. Os diques foram reconstruídos e reforçados. Na rota de furacões, no auge da temporada das grandes tempestades, a cidade teme, em parte, a repetição da catástrofe. Mas recobrou a alegria.
Prova disso é que, em pleno verão no Hemisfério Norte, milhares de turistas lotam ruas, bares e hotéis. Como Nova Orleans convive com o passado e vive o presente é tema desta reportagem com o relato de Rodrigo Lopes, que esteve na cidade durante a tragédia do Katrina, em 2005, e de Rosane Tremea, que visitou a cidade neste ano.
A primeira impressão
Em 2005
Arranha-céus brotam da água suja. Esta foi a primeira imagem que vi de Nova Orleans, quatro dias depois da passagem do furacão Katrina. O visual era este. O cheiro era insuportável: os pântanos que rodeiam a cidade vomitavam corpos.
Inundada, saqueada e parcialmente destruída, Nova Orleans era símbolo da incompetência do governo George W. Bush, que abandonou sua população, composta em maioria por negros e pobres. Tratava-se de uma legião de refugiados que passavam em comboios formados por ônibus escolares amarelos à minha esquerda pela estrada praticamente vazia.
Todos queriam sair da cidade. E eu queria entrar.
Agora
Dez anos depois é a minha oportunidade de visitar New Orleans pela primeira vez, como turista. Chego em um trem da Amtrak limpo e confortável que, pela região dos pântanos, circula em velocidade baixa paralelo à Interstate 10. À direita, a imagem do pântano e das árvores que brotam nele, com as raízes acima da água, impressiona. É um verde diferente.
À medida que nos aproximamos da área urbana, a velocidade diminui. Uma amiga que tinha estado ali em 2010, para registrar os cinco anos da tragédia do Katrina, chama atenção para o prédio gigante e reluzente à direita. É o Superdome, o estádio para onde foram levados milhares de desabrigados pelo furacão.
A bacia se encheu
Em 2005
Nova Orleans é como uma bacia. Abaixo do nível do mar, a cidade fica entre o Rio Mississippi e o Lago Pontchartrain.
Quando o Katrina tocou a terra, rajadas de vento de até 230 km/h arrasaram os diques que protegiam a cidade. A bacia se encheu de água.
A única porção de terra que não submergiu ficava próxima à margem do Mississippi. Por ali, cheguei ao centro de Nova Orleans, desviando de postes caídos nas ruas do arborizado bairro de Metaire, escoltado por batalhões de forças especiais – a cidade estava sendo saqueada.
Agora
Há eventos que marcam uma cidade. Lisboa será sempre a do terremoto e dos incêndios de 1755. Nova York será sempre a do 11 de Setembro. Acho difícil New Orleans esquecer aquele agosto de 2005. Em New Orleans, as nuvens me dão medo. Não chega a ser pânico, mas o aviso que chega no meu celular acrescenta um ingrediente que me deixa assustada: o serviço de meteorologia alerta para uma tempestade. Mas bastou entrarmos no hotel para desabar o temporal anunciado. O aviso também dizia que a chuva duraria até as 5:38 p.m. E, como por milagre (na verdade, ciência!), parou mesmo. Será aprendizado daquele duro episódio?
A avenida principal
Em 2005
Os ventos do Katrina não arrancaram as palmeiras da Canal Street, a avenida principal onde antes devia ser um pulsante local de turismo, com direito a passeio de trem de superfície. Das garagens dos hotéis Marriot e Sheraton emergiam carros de combate. As forças armadas e a Segurança Nacional tentavam recuperar o tempo perdido. Chegaram tarde. Nova Orleans contava 1,8 mil mortos. Para colocar ordem na casa, o governo decretou a cidade área militar – os 8 mil moradores que resistiam à saída, muitos por causa dos animais de estimação, tiveram de deixar suas casas à força. Com o decreto, todo cidadão encontrado nas ruas sem identificação seria detido.
Agora
Pela Canal Street, agora, circulam bondinhos simpáticos que ficam abarrotados de moradores e de muitos turistas. Caminhamos até o final da Royal Street, cruzamos a Canal, e tomamos o streetcar St. Charles, linha que começou a circular em 1835, a mais antiga da cidade, uma das primeiras dos EUA. Nosso objetivo é o elegante Garden District. Queremos ver os casarões típicos e circular pela área com galerias de arte e lojas. Perguntamos se, por ali, as águas do Katrina fizeram estrago, e a resposta soa tão óbvia quanto a pergunta: quem sofreu mais foram as zonas pobres. As áreas nobres, além de menos atingidas, foram as mais rapidamente reparadas.
Segurança
Em 2005
Cerca de 80% da cidade foi inundada. Sem internet e com a telefonia prejudicada, Nova Orleans, uma das maiores metrópoles americanas, capital do jazz, é terra sem lei.
Nas esquinas, militares armados davam a impressão de segurança com prazo de validade para acabar. O toque de recolher vigora das 18h às 6h. “Pessoas andam pelas ruas roubando. Se tu tens uma bicicleta, te matam para ficar com ela. Há relatos de estupros. À noite, escutam-se muitos tiros”, conta uma mulher.
Nas lojas, proprietários que saíram às pressas deixaram sofás abandonados em frente às portas, na tentativa de evitar saques. Em vão.
Agora
Nossa visita ocorreu quando faltava uma semana para um dos maiores eventos da cidade, o New Orleans Jazz & Heritage Festival, em abril. Ao contrário de 10 anos atrás, há muita gente e muita vida pela cidade. As pessoas bebem e cantam na rua ou abarrotam perigosamente as varandas típicas ornadas de ferro, como se não houvesse amanhã. Tudo muito alegre, muito agradável para quem faz turismo, a não ser pelos avisos em cartazes espalhados pelo French Quarter pelo Departamento de Polícia : “Atenção, ande em grupo” – uma forma encontrada para proteger moradores e turistas em uma cidade ainda considerada das menos seguras nos Estados Unidos.
Cidade sitiada
Em 2005
A circulação limitada pelas águas obriga-me a serpentear por ruas e avenidas, retornar, encontrar uma árvore pelo chão, água ao final da rua, marcha a ré. Foi assim que, de repente, vi o Superdome a uns 500 metros de onde eu estava. Ali, um ginásio modernoso ao estilo das grandes arenas americanas, aconteceram algumas das piores atrocidades durante o Katrina. Sem auxílio das autoridades, os moradores foram aos poucos se empilhando nas arquibancadas. Até hoje, os relatos são controversos, mas fala-se de estupros e saques nos banheiros. O Superdome era uma ilha. Ficar significava ter seus direitos violados. Sair significava morrer.
Agora
No Museu do Estado da Louisiana e hoje existe uma contradição. No segundo piso está o museu do Mardi Gras, o alegre Carnaval de New Orleans. No térreo, a exposição “Furacões: Katryna and Beyond”. Na nossa última manhã na cidade, penetramos nesse mundo de corredores escuros, imagens assustadoras de satélites, vídeos com depoimentos de vítimas, animações mostrando a rapidez com que a cidade seria engolida pelas águas. Não é nada grandiosa a exposição. Ainda assim, é contundente. É um sinal de que 10 anos depois, a cidade, por mais música, Carnaval e alegria que tenha, lembrará sempre o agosto de 2005 como o do furacão Katrina.
Deixe sua opinião