Desde 2005 o Ministério das Comunicações do Brasil estabeleceu que, nos selos referentes a pessoas, somente se pode comemorar o nascimento, nunca a morte dos indivíduos
O ser humano é um ser social, histórico e simbólico: isso significa que só pode viver em sociedade, cujos resultados acumulam-se ao longo do tempo e que têm importância material e também cultural. Assim, como dizem, "recordar é viver": nossas famílias, nossos concidadãos, os grandes nomes da humanidade.
Os selos postais foram inventados no século 19 para facilitar as trocas comerciais e epistolares; começaram indicando apenas os valores monetários e logo passaram a homenagear valores, pessoas, datas e invenções: essa foi uma forma simples, barata e popular de cada país realizar sua historicidade.
O Brasil não é exceção e tem uma programação anual de selos oficiais comemorativos, lançados pela Empresa de Correios e Telégrafos, em comissão do Ministério das Comunicações. Não apenas figuras nacionais já foram homenageadas o inventor Santos Dumont ou o time Corinthians, por exemplo , mas também personagens mais distantes no tempo e no espaço como o infante Dom Henrique, príncipe português do século 15 que favoreceu as grandes navegações, e Santa Clara de Assis, companheira de São Francisco. Ao fazê-lo, os Correios e o Ministério das Comunicações realizam obra cultural importante, de amplo alcance humano.
Desde 2005, todavia, o Ministério das Comunicações do Brasil estabeleceu que, nos selos referentes a pessoas, somente se pode comemorar o nascimento, nunca a morte dos indivíduos. Na verdade, o item V. II da Portaria 500/2005 estabelece que "Selo homenageando personalidade deverá ser emitido, preferencialmente, no aniversário de nascimento do homenageado, evitando-se referência à data fúnebre". Como já tive ocasião de comprovar, o "preferencialmente" é tomado ao pé da letra e lido como "unicamente".
Essa decisão, tão simples, é tola, ingênua e contraproducente. Recusar a "referência à data fúnebre" parece medida de grande humanismo, mas é apenas demagogia barata, adotando a visão simplista e piegas (por sugestão de "marqueteiros"?) de que a morte é "ruim" e, como tal, deve ser "evitada".
Assim, a questão que se apresenta é ao mesmo tempo bastante filosófica e de interesse público: o que é mais importante homenagear, o nascimento ou o falecimento? Ora, é evidente que todos os indivíduos que vivem ou viveram nasceram em algum momento; isso é algo para comemorar-se, sem dúvida. Mas um nascimento é apenas uma promessa, uma grande esperança, que pode realizar-se ou frustrar-se. A todo instante vemos pessoas que tinham "tudo para dar certo", mas que erraram e falharam, ou cujas decisões foram desastrosas; vemos políticos, artistas, pensadores, industriais e cidadãos comuns cujos comportamentos conduziram ao desastre não apenas as próprias vidas como as vidas dos demais indivíduos. Ou, inversamente, pessoas cujos nascimentos não prenunciavam muito, mas cujas vidas foram plenas de significação e realizações.
Em outras palavras, avaliar de fato a vida de cada um só é possível no fim dela, frequentemente após vários anos (mesmo décadas ou séculos) do falecimento. Definir se alguém merece alguma forma de homenagem com selo, estátua, nome de ruas, avenida, museu, cidade, etc. só é possível após o falecimento.
Essa perspectiva não guarda relações com a visão macabra sugerida pela Portaria do Ministério das Comunicações; em vez de centrar-se em indivíduos que vivem em si e para si, comemorar as datas dos falecimentos é afirmar que o ser humano é social, histórico e simbólico, isto é, que vive para os outros e nos outros e que, quando sua vida realmente valeu a pena, merece ser eternizada, inclusivamente nos pequenos adesivos que facilitam as comunicações humanas.
Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo da UFPR, é professor da UTP. E-mail: gblacerda@ufpr.br