Em 1976, o geólogo italiano Claudio Avanzato, durante uma pesquisa a 60 quilômetros de Bolonha, no nordeste da Itália, em busca de construções antigas ao redor do Monte Castello, lançou luzes sobre um território tão caro aos brasileiros que lá combateram nos idos de 1944-1945.
Sem uma preocupação histórica, o geólogo fez um levantamento topográfico no local e organizou um mapa revelador, com projeção pictográfica que mostrava no morro as ruínas de uma antiga cidade. A cidadela recebeu o nome de Castello Leone, e os primeiros dados da sua existência remontam a 1227. No alto do morro, a cidade, como outra qualquer, possuía uma pracinha com uma igreja no centro, aposentos para os habitantes que a defendiam seja para os soldados, bem como as cavalariças. O chefe era o podestà, que ditava as leis e os costumes. Dessa construção resta pouco hoje: partes de um muro de pedra com 1,90 metro de altura, fragmentos um pouco menores e uma pia batismal encontrada no pós-guerra.
Nesse mesmo local, os Aliados (dentre os quais os brasileiros), durante a Segunda Guerra Mundial, vivenciaram momentos angustiantes, depois de várias tentativas de assaltos à tropa alemã que estrategicamente ocupava o seu alto. Ponto vulnerável na campanha, pois ali perto estava a Estrada Porretana 64, o maior entroncamento de estradas no período da guerra no norte do país. Quem se apoderasse desse trecho provavelmente exerceria um papel preponderante no local, e a guerra poderia ter outro destino. Eis o porquê da luta tão renhida e dos sofrimentos dos que lá combateram.
Muitos monumentos foram criados pelas cidades italianas em homenagem aos brasileiros no pós-guerra, mas nada se iguala ao monumento Liberazione, situado em frente do Monte Castello, projeto original da artista Mary Vieira, cujo nome está no esquecimento.
Além de artista, Mary foi professora e nasceu em São Paulo. Descendente de tradicional família paulistana, muito jovem ainda frequentou os cursos de Desenho e Pintura na Escola de Belas Artes, em Belo Horizonte, em 1942. Nos anos subsequentes, entre 1942 e 1948, produziu seus primeiros trabalhos plásticos denominados "monovolumes". Em Minas Gerais, organizou seus ateliers em Araxá e Poços de Caldas. Mais tarde, em Petrópolis e Salvador, onde trabalhou seus primeiros "multivolumes" e "polivolumes".
São dezenas as suas obras públicas no Brasil; uma das mais conhecidas é o monovolume Liberdade, projetado na praça central de Belo Horizonte. Da construção desse monumento, acreditamos, Mary Vieira tenha tirado inspiração, dada a similaridade desse trabalho, na interpretação da autora, com o monumento Liberazione, projetado para a Itália.
No exterior, Mary Vieira frequentou um círculo de amizades de grande expressividade cultural, formado por artistas, pintores, escultores, escritores e poetas. Recebeu vários prêmios internacionais, conferidos pelos governos da França, Grécia e Itália.
Mas qual foi a ligação de Mary Vieira com o Monte Castello e o seu monumento Liberazione? Em 1995, quando esteve em São Paulo para uma visita ao país, ela teria manifestado seu desejo de construir um monumento aos brasileiros que haviam lutado na Segunda Guerra Mundial. A obra, em mármore branco de Carrara e granito preto brasileiro, seria edificada no convale do Monte Castello, na região mais conhecida como Guanella, na pequena cidade de Gaggio Montano. Em 1996, a artista dá entrada ao projeto na prefeitura local.
Os entraves foram muitos entre o desejo de construir o monumento, conseguir a doação do terreno e ter a aprovação das autoridades brasileiras, tornando a caminhada difícil. Somente em 1998 foi resolvida a questão da doação definitiva do terreno da família Berti aos brasileiros. O lançamento da pedra fundamental ocorreu no dia 21 de fevereiro de 1999, com a presença do ministro da Cultura brasileiro, Francisco Weffort, e do prefeito Roberto Melosi, de Gaggio Montano, com a presença de Mary Vieira. Já muito doente, a artista compareceu por diversas vezes ao local onde se encontra hoje o monumento, orientando outros arquitetos e trabalhadores que atuaram na sua construção.
Com 7 metros de altura e 14 metros de largura, o Liberazione foi inserido num círculo de 35 metros de diâmetro, bem no meio de terras cultiváveis no vale do Monte Castello. O projeto, de linhas arrojadas, consiste em dois arcos que se cruzam em mármore de Carrara, com a base em granito preto baiano; fiel aos princípios matemáticos, a escultura esclarece que os arcos prolongados em suas extremidades encontrariam o infinito. Um dos arcos brancos, que aponta para a terra, simboliza a morte; o outro aponta para o céu, isto é, para a transcendência que essas mortes significaram, definindo assim, por consequência, a "forte carga simbólica".
Hoje, o monumento tem o cuidado especial da prefeitura de Gaggio Montano; sem o muro projetado por Mary Vieira, foi organizado um pequeno jardim ao seu redor. A inauguração do monumento, em junho de 2001, suscitou declarações de vários órgãos da imprensa italiana e brasileira, como o jornal italiano Le Voce dei Combattenti Reduci, de Bolonha: "Vendo o grande complexo monumental, nascem tantas as esperanças conquistadas com infinito sacrifício; no íntimo do coração, certamente nasce um credo que exorta a considerar a custódia de garantia de um grande bem precioso que se chama paz".
Carmen Lúcia Rigoni, doutora em História Cultural, é membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR) e da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB).
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