Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

Muito além do Oscar

 | Divulgação/
(Foto: Divulgação/)

A Academia Brasileira de Cinema (ABC) se reuniu publicamente na Cinemateca, há quase duas semanas, para anunciar o nome do longa-metragem que representará o país no prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2018. Após a polêmica do ano passado, em que boa parte da crítica especializada achou que Aquarius fora boicotado pelo Ministério da Cultura por motivos estritamente políticos, muitos esperavam que a escolha deste ano mostrasse uma postura ideológica contrária à que domina o cinema brasileiro há décadas e a obra selecionada fosse Polícia Federal – A Lei É Para Todos, filme sobre a onipresente Operação Lava Jato. No entanto, a instituição acadêmica responsável pela seleção afastou-se de qualquer influência indevida e escolheu Bingo – O Rei das Manhãs.

Para compreender essa opção, não é preciso ir muito longe. Por várias décadas, o Oscar foi conhecido por privilegiar narrativas lineares e clássicas, com uma preferência por figuras e temas fortemente norte-americanos. Deste modo, ao se decidirem por Bingo, um filme realizado de acordo com as convenções do cinema hollywoodiano e focado na vida de um dos intérpretes brasileiros do Bozo, lendário personagem criado nos Estados Unidos, a ABC entendeu que a produção dirigida por Daniel Rezende continha todos os elementos necessários para conquistar os corações dos votantes .

Bingo não busca quebrar paradigmas técnicos , não tem a intenção de pintar um retrato do que é o Brasil nem era o melhor entre os indicados

Todavia, duas coisas importantíssimas foram esquecidas. A primeira delas é o fato de que o Oscar está sinalizando mudanças. Depois da vitória de Moonlight – Sob A Luz Do Luar, dirigido por Barry Jenkins, ficou evidente que os membros da Academia se abriram mais aos discursos progressistas e de representatividade sexual e racial. Isso acaba fortalecendo a ideia de que, após os comentários raivosos de Hollywood sobre um possível preconceito por parte da premiação, se estabelecerá um critério de avaliação muito mais político pelas próximas temporadas (o filme de Jenkis sequer teria sido indicado se não tivesse existido uma polêmica ao seu redor). Se esse caminho for seguido, invariavelmente, as obras tipicamente norte-americanas e injustamente chamadas de “quadradonas” ― isto é, em que há narrativas lineares e temais mais conservadores ― perderão sua força gradativamente.

A segunda coisa esquecida é o pensamento que guia a seleção dos cinco finalistas na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. O cinema é uma arte mundial, praticada em quase todos os lugares do mundo. O Oscar, por sua vez, é um evento nacional, em que uma indústria olha apenas para o próprio umbigo. Evidentemente, não há problema nenhum nisso. Porém, como sempre existiu um caráter messiânico nos Estados Unidos, talvez por alguma culpa insondável, a Academia gosta de usar a categoria de filmes estrangeiros para premiar longas que representam intensamente a cultura dos seus respectivos países. Em outras palavras, obras em que as principais características de uma nação estejam visivelmente estampadas, sem a influência externa do jeito americano de fazer filmes (basta ver quais foram as produções nacionais que receberam algum tipo de atenção internacional para que essa afirmação seja corroborada).

Entre essas duas realidades, não há necessidade de ser um gênio para perceber que o Oscar pouco se importa com a qualidade dos filmes. Na verdade, nunca se importou. Desde que foi criada, a Academia sempre foi nutrida pelas preferências individuais de seus membros, por interesses comerciais, índices de audiência e exigências discursivas de ambos os lados do espectro político (quando um filme realmente merecedor saiu como vitorioso, isso se deu mais por coincidência do que pelo simples mérito). Se hoje em dia ela é manipulada pelo histrionismo dos canais de mídia e da esquerda intolerante, é porque existem antecedentes no seu passado.

Portanto, embora o raciocínio da ABC seja compreensível do ponto de vista histórico, é ineludível que a escolha de Bingo – O Rei das Manhãs tenha sido não só anacrônica como também pouco brasileira ― além, é claro, de não ter sido orientada unicamente por padrões estéticos de avaliação. Afinal de contas, o filme roteirizado por Luiz Bolognesi não busca quebrar paradigmas técnicos ou sociais, não tem a intenção de pintar um retrato parcial do que é o Brasil nem era o melhor entre os indicados (os filmes que se encaixavam nessas categorias eram, respectivamente, Corpo Elétrico, do diretor Marcelo Caetano, Era o Hotel Cambridge, da cineasta Eliana Caffé, e O Filme da Minha Vida, de Selton Mello). Assim, é bem provável que o longa protagonizado por Vladimir Brichta não passe nem das avaliações primárias, ficando para trás logo após o tiro de disparada e não gerando a mínima preocupação nos seus concorrentes.

Contudo, sejamos sinceros: com exceção de para aqueles que estão diretamente envolvidos com Bingo – O Rei das Manhãs e sua indicação, o Oscar não terá importância alguma. É preferível que o cinema brasileiro exorcize os fantasmas ideológicos que há anos o possuem e corrompem. Caso contrário, de que nos adianta uma estatueta dourada no topo de um monte frágil, formado, em sua grande maioria, por obras panfletárias e propagandísticas?

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.