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O poder político ilusório e imaginário

Em 1930, o filósofo francês Henri Bergson queixava-se do mau hábito de os homens inteligentes confundirem o possível com o real. O possível são hipóteses múltiplas em qualidade e quantidade, porque o possível é simplesmente o não impossível e aquilo que (em relação com o futuro) não é impossível de acontecer é de uma multiplicidade quase infinita. Ora, aquilo que afinal aconteceu, o fato real (a hipótese que realmente se realizou), é único e irreversível. Quem exerce o poder político no Brasil superou a observação de Bergson, pois confunde o impossível com o real.

O poder hoje exercido é prisioneiro de suas próprias mentiras e por este motivo necessita continuar falsificando o passado, o presente e, especialmente, o futuro. Falsifica os dados estatísticos. Finge não ter aparato policial todo-poderoso capaz de tudo; finge não ter medo; finge não ter nada a temer. O indivíduo não tem, forçosamente, de acreditar em todas as mistificações, mas deve conduzir-se como se nelas cresse, ou , quando menos, tolerá-las em silêncio; ou, ainda, estar em boas relações com os que as produzem. Tudo isso o obriga a viver na mentira e no impossível.

Esquece-se o homúnculo que exerce o poder político que este deverá fundar-se na vida e na verdade, e aí reside o fato de que, uma vez descoberto, possui um aliado certamente invisível, mas onipresente, que trará inevitavelmente problemas: a “esfera oculta” de que fala Václav Havel, ou maioria silenciosa, que tem o imenso papel de garantir a liberdade e a segurança paralela, a democracia. A esfera oculta vê-se mais uma vez enganada, mas retornará para cobrar o segundo engano.

Veja-se que se alcançou aqui uma consolidação exterior do poder e se pagou com a crise espiritual e moral da sociedade.

Mas o pior nesta crise que se aprofunda é que basta elevar-se acima do cotidiano para se ter consciência, com horror, da rapidez com que abandonamos posições que antes jamais podíamos deixar; coisas que a consciência social ontem considerava como indecentes são costumeiramente desculpadas, para amanhã podê-las seguramente aceitar como naturais e, quiçá, depois de amanhã, como decência exemplar. Hoje aceitamos sem nenhum assombro, como uma realidade, coisas às quais ainda ontem dizíamos que nunca nos acostumaríamos ou que considerávamos impossível aceitar. Pelo contrário, hoje consideramos como um ideal algo que faz pouco nos resultava evidente.

Esquece-se o homúnculo que exerce o poder político que este deverá fundar-se na vida e na verdade

As transformações da medida do natural e do normal e o desfazimento no sentido moral surgido nos últimos anos pelo exercício de um poder menor, na sociedade, resultam maiores do que possa parecer à primeira vista. E, causa-nos certo torpor a capacidade de se dar conta deste embrutecimento e de como ele se desenvolve. É como se a enfermidade caísse das folhas e os frutos, ao tronco e raízes. Por isso existe a inquietude que se apresenta no setor de perspectivas oferecidas pelo presente.

Internamente a sociedade se desenvolve, enriquece e cultiva em primeiro lugar em ter uma consciência, cada dia mais profunda e diferenciada de si mesma. O mundo de tal verdade jamais poderá ser reprimido ou policiado, como se tentou. A sociedade aprofunda e sustenta sua liberdade e descobre a verdade.

A gravidade é a resposta à pergunta global que se deve fazer e que é a seguinte: que profundidade terá a impotência espiritual e moral do Estado no futuro próximo?

Se a lei fundamental do cosmos é levar à entropia, a lei fundamental da vida é, pelo contrário, incrementar a estruturação e a luta contra a entropia; a vida resiste a toda uniformidade e unidade.

Há de se perguntar primeiro de onde vem o poder e que razões lhe conferem justiça, utilidade necessidade e legalidade que determinam ao cidadão o dever moral de obediência.

A existência do poder se prova por si mesma, mas é o poder atual que nos interessa efetivamente, e é ele que origina o poder político menor que nos obriga a com ele conviver. Montesquieu dizia que é uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder é levado a dele abusar. Vai até onde encontra limites, ou até onde lhe são impostos limites; aqui, o Poder Judiciário impõe as restrições, ou deveria impô-las e fazê-las cumprir. A “esfera oculta” isso espera, pois, como afirmou Platão em Criton: “Pensas que pode existir um Estado sem leis, ou que as leis não sejam destruídas ou aniquiladas, quando julgados não têm força, quando cada qual as possa violar, subtraindo-lhes a execução?”

Há cerca de 25 séculos que isto ensinava o filho de Ariston, diz Ruy Barbosa, e, obra de 2,5 mil anos depois, se com esse critério quisermos avaliar certas democracias, como a nossa, acharemos que o governo ainda não se embebeu dessas milenares vulgaridades e ainda não se convenceu de que a Justiça é a essência do Estado e, consequentemente, do poder político.

Vive-se hoje no Brasil uma imensa mentira. Quanto mais se fala em democracia, menos se oferecem ao povo suas liberdades, vilipendiado que é em sua dignidade, em sua honra, em seus interesses permanentes e aspirações mais nobres.

Os semimarxistas e os frios ganhadores de dinheiro que infelizmente regem o país esqueceram-se de que as forças morais libertárias e legais determinam as reações de um povo. A “esfera oculta”, mais dia, menos dia, irá se manifestar quando tomar consciência de que o Congresso Nacional não o faz por ela. Todos pagarão, nas urnas ou não.

O interesse do povo, em vez de uma razão, converteu-se num pretexto para privar o mesmo povo de atender, como bem entender, seu próprio interesse. O poder político passou a ser regido por interesses de grupos que, constituindo o governo, dominam o Estado. Mas esse domínio não se dá pelas regras da razão, e sim pelas regras do imaginário e da ilusão. Todos os atos do poder político atual são ilusórios e imaginários, não são reais e verdadeiros, são mentiras que passaram a ser verdades.

Enfim, o poder político que se exerce e conduz a nação se parece e faz parecer ao Estado como totalitário. E o poder imaginário e ilusório conduziu o país a um extremo abalo moral; assim também se dá com a maioria de seus estados membros. A grande maioria está chafurdada. Esperemos o fim desse melancólico e triste espaço que estamos vivendo. Há de ter um paradeiro. O Congresso há de exercer suas prerrogativas, o mesmo ocorrendo com o Judiciário. A democracia e a “esfera oculta” assim o exigem, para que se ponha fim a uma página negra de nossa história, em que o povo se encantou com um governante que exerce um poder ilusório e imaginário, em que mentiras são verdades e verdades são mentiras.

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