A associação é irrefutável – a cascata de dólares que jorra da Operação Lava Jato e as águas perdidas do Rio Doce, alagando, destruindo e matando, formando um “mar de lama”, esse clichê tão caro à história brasileira. O país assiste com assombro – e, convenhamos, a maior parte ainda sem saber o que dizer.
O desgoverno de uma barragem é uma imagem onipresente no imaginário brasileiro. Mas se tornou um fantasma acorrentado. O nosso modus operandi, avizinhado da corrupção, diz-se, desde a chegada das caravelas; nosso afã tecnológico; e a crença descabida na providência divina pareciam sempre apontar a possibilidade do pior. Até que o pior aconteceu.
Vale lembrar um acontecido nas páginas desta Gazeta do Povo. Desde 1963, quando das primeiras fumaças do que viria a ser a Usina Hidrelétrica de Itaipu – e quando dos anúncios de que as Sete Quedas de Guaíra desapareceriam –, falava-se do risco daquele modelo de geração de energia e quetais. A expressão “um estado debaixo d’água”, em protesto, invocava medos em sequência: o da escolha de um único modelo energético; o da perda de grandes extensões de terras férteis, tomadas pelas águas; o pavor de um acidente.
O tempo se encarregou de sepultar esses temores, até porque em terras brasileiras temores não faltam. E eis que de repente... Cá estamos nós com o estrago e tendo de nos virar com ele. Repetindo nosso padrão, parece que é preciso o pior acontecer para que a sociedade saia da letargia e comece a ocupar o seu lugar. Neste momento, a propósito, há muito a fazer – a primeira tarefa, tomar tento das questões macroestruturais, rejeitando o cômodo papel contemplativo, como se estivéssemos em um museu de arte clássica.
Parece que é preciso o pior acontecer para que a sociedade saia da letargia e comece a ocupar o seu lugar
Pode-se dizer que são coisas diferentes; que nada têm a ver a exploração de minério de ferro feita pela Samarco na região de Mariana, em Minas Gerais, e as correlatas do nosso modelo econômico. Sim, têm a ver. A população é alheia a essas obras, seus perigos, aos interesses que as movem. Não é o que se espera de uma democracia. Agora é a sociedade brasileira que vai ter de pagar a conta, até que uma camada geológica toda deixe para o passado tanto barro – e barro infértil – que vai sepultar não só a nossa riqueza, mas também a nossa memória. Os moradores da região não vão poder enterrar seus mortos, como bem lembrou a colunista Míriam Leitão. O que mais se há de dizer?
O que se quer é uma resposta do governo, da Samarco, de seus sócios – os da Vale e os da anglo-australiana BHP Billiton, duas das maiores mineradoras do mundo. Todos eles devem estar acostumados a ouvir que os brasileiros esquecem – é nossa virtude e nosso defeito, e só nós conseguimos essa conciliação absurda. Mas é hora de dizer “não”. Não vamos esquecer os mortos de Mariana, pois eles se foram num momento de esgotamento cívico e emocional. Não é destempero; é tomar um fato como um marco de um novo tempo. Temos de decorar esse número: 60 bilhões de litros de rejeitos de mineração de ferro escorrem em 500 km na bacia do Rio Doce, a quinta maior do país.
A tragédia de Mariana não pode se transformar numa efeméride – tem de se transformar num antes e num depois. É isso ou seremos merecedores de todos os fracassos que nos impuseram nos últimos anos, para dizer o mínimo. Esse pecado não pode ter como penitência o equivalente a ter um papagaio em casa, para deleite das crianças. Centenas de milhões, 1 bilhão de reais? Quem sabe se será suficiente? Que seja aplicada a mesma régua aplicada ao petrolão – e que venha um novo tempo. Basta se ater aos fatos, inclusive ao fato de que havia alertas do Ministério Público de Minas Gerais. Parece que a palavra deve ser “descaso” e não “fatalidade”. Que pulemos essa ponte com cuidado, mas, acima de tudo, com coragem.
Paulo Saldiva, especialista em poluição ambiental da USP, diz que este é o maior acidente ambiental de nossa história – não temos mais nenhum recorde a bater. Há um sem-número de perguntas a responder. E virão outras, porque o efeito dominó assombra a região. “Quanto custa a perda de uma espécie, de um rio ou de um manguezal?”, pergunta a pesquisadora Alessandra Magrini, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pergunta agora também é nossa.
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