Quando os alunos da Sorbonne, na França, em 3 de maio de 1968, uniram-se às manifestações dos estudantes de Nanterre, que vinham protestando contra punições desde março daquele ano, não se podia esperar a escalada de eventos, no país e no mundo, que ficaria desde então lembrada pela alcunha genérica de “Maio de 68”. O movimento estava longe de ser uniforme dentro da própria França, bastando lembrar a disparidade de reivindicações e a desconfiança entre os estudantes e os sindicatos. Ao redor do mundo, tampouco foi diferente. No Brasil, a passeata dos 100 mil se manifestaria contra a ditadura e, nos Estados Unidos, a oposição à Guerra do Vietnã se misturava à luta por direitos civis. Ainda que seus dividendos políticos imediatos na Europa tenham sido praticamente nulos e até hoje se discuta seu legado, Maio de 68 deixou uma marca cultural profunda no Ocidente que se faz sentir até hoje e traz lições importantes àqueles que discordam do espírito revolucionário de então.
Do ponto de vista cultural, não se pode negar que as invasões corriqueiras de universidades, a liberdade sexual desconectada de qualquer senso de responsabilidade, que semeia o aborto e famílias desestruturadas, o primado dos desejos e da auto expressão sobre o pensamento racional não relativista, a política identitária, o escárnio indiscriminado contra toda tradição e a perda da noção de autoridade foram catalisados por Maio de 68 e se alastraram pelo Ocidente, virando de cabeça para baixo fundamentos milenares da vida social. Não era para menos: os estudantes de 1968 cresceram sob a sombra do colapso da “razão iluminista”, da vergonha europeia corporificada pelo nazifascismo e do desapontamento engendrado pelo totalitarismo comunista, exasperados por uma geração de intelectuais engenhosos – Jean Baudrillard, Guy Debord, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Herbert Marcuse, Wilhelm Reich – empenhados em dinamitar a compreensão tradicional de tudo que havia de mais caro aos cidadãos comuns e às “elites” tradicionais: sua família, sua religião e seus costumes – sua própria identidade, enfim.
Leia também: A dor de viver como os pais: o fantasma de Maio de 1968 (coluna de Flávio Gordon, publicada em 02 de maio de 1968)
A questão realmente importante, no entanto, é a seguinte: como pode um grupo de pensadores e estudantes cujos lemas os tornavam quase nefelibatas – “a imaginação no poder”, “seja realista, peça o impossível”, “é proibido proibir” – ser capazes de causar um impacto tão grande em toda a cultura Ocidental? A resposta está menos no ímpeto da agenda permissiva que foi contraposta ao conjunto de valores tradicionais do Ocidente do que na própria vulnerabilidade que esse conjunto demonstrou, por uma total inabilidade de ser defendido contra a engenhosidade com que foi atacado. A lição é clara: nenhum valor deve ser dado como definitivamente adquirido sem que seja perenemente regado de cuidado e inspiração. Nem se pense que estará para sempre enraizado. Foi por entre as fendas de uma sociedade ressecada que os revolucionários de 1968 souberam fazer brotar sua mensagem sedutora.
Uma sociedade rígida e fechada demais convida que se faça dela terra arrasada
Mas há outra lição importante. Maio de 68 também descortinou a tremenda energia criativa da juventude. Desconsiderando a energia mal canalizada neste específico momento histórico, é indubitável que o legado é positivo, pelos potenciais que traz. Nas décadas que se seguiram, o Ocidente começou a intuir quão mais rápidas podem ser as transformações sociais, quão desnecessários são certos formalismos e rigidezes de comportamento, quanta energia pode ser aproveitada em todos os campos da atividade humana com o talento dos jovens: no mundo empresarial, nas artes, na ciência. O ímpeto da juventude permite justamente um novo olhar para as coisas velhas, uma nova perspectiva para a solução de toda sorte de questões. Uma sociedade rígida e fechada demais convida que se faça dela terra arrasada, às vezes para resolver questões simples com as quais se lidaria com facilidade em um ambiente mais arejado. Imagine-se agora, além disso, que todo esse ímpeto viesse de jovens virtuosos, bem-educados e conscientes da importância do bem comum. Não se pode negar que a vitalidade e a vontade de protagonismo de uma tal juventude representariam um tremendo ganho, quer em autonomia para esses jovens, quer para as sociedades que se beneficiassem de toda essa energia, balizada pelos melhores valores, nas empresas, associações civis e na vida política.
Maio de 68 é tanto a culminância de um projeto intelectual como o ponto zero de uma vaga social que se propaga até nós, hoje louvado pela nova esquerda e anatematizado por conservadores. Melhor, no entanto, encará-lo sem deslumbramento nem medo, identificando o que pode nos ter trazido de bom e inspirando-nos a reagir a seus excessos e absurdos com engenho, arte e alegria. Aqueles que defendem o melhor do legado Ocidental devem fazer exatamente isso.
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