Soava como um apocalipse político. Quando a Polícia Militar (PM) avançou sobre servidores públicos estaduais que protestavam em frente à Assembleia Legislativa do Paraná na tarde do dia 29 de abril de 2015, em um episódio que deixou mais de 200 feridos, o prejuízo político era incontestavelmente iminente para os principais envolvidos – nomes como o do governador, Beto Richa (PSDB), do secretário de Segurança Pública, Fernando Francischini (PSL), e do líder do governo na Assembleia Legislativa, Luiz Claudio Romanelli (PSB). Por um tempo foi. Mas se o som das bombas ainda ecoa nos ouvidos de professores e de quem esteve diretamente envolvido no que se convencionou chamar de “Batalha do Centro Cívico”, o barulho fora deste ambiente parece ter sido aplacado três anos depois.
No ano em que o confronto da Praça Nossa Senhora de Salete poderá ter seu efeito medido nas urnas pela primeira vez, a realidade mostra que boa parte dos envolvidos volta ao jogo eleitoral com as manchas muito mais amolecidas pelo tempo do que se esperava. Um efeito que pode ser explicado em parte pelo arquivamento dos processos na Justiça, com alívio para os envolvidos, e em parte pela agenda política nacionalizada, em que o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula – ambos do PT – e desdobramentos da Operação Lava Jato ocuparam muito mais espaço na memória do eleitor.
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Uma pesquisa de opinião pública realizada pelo Paraná Pesquisas, com dados coletados ao longo dos anos, aponta que a popularidade de Richa subiu de forma considerável de 2015 para cá. Em setembro de 2015, meses após a batalha, 24,5% dos ouvidos pelo instituto aprovavam o governo de Richa. Em março de 2018, último mês do tucano à frente do Executivo estadual, sua aprovação era de 41,9%. A desaprovação de seu governo, por consequência, caiu de quase 73% em 2015 para perto de 54% neste ano. Nem a Batalha do Centro Cívico, nem envolvimentos nas operações Quadro Negro e Publicano serviram para interromper a curva ascendente de Richa.
Quem não estava diretamente ligado a ela [Batalha do Centro Cívico] vai ter uma memória negativa, mas não determinante para seu comportamento em relação à avaliação do governo
De lá para cá, o ex-governador se tornou o caso mais simbólico de como o tempo pode amansar os ânimos. Richa é hoje um forte concorrente a uma das duas vagas paranaenses ao Senado nas eleições de outubro. “A avaliação do governo leva em conta várias coisas e é feita por gente de todo o estado. A ação na Nossa Senhora de Salete teve alta visibilidade, muito aguda, mas extremamente pontual. Quem não estava diretamente ligado a ela vai ter uma memória negativa, mas não determinante para seu comportamento em relação à avaliação do governo”, analisa Emerson Cervi, doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Nos meses seguintes ao confronto, deputados da base do governo evitavam aparecer em eventos públicos. Quem se encorajava a fazê-lo, corria o risco de ser hostilizado – como ocorreu com o então líder do governo na Assembleia, Luiz Cláudio Romanelli. Hoje, no entanto, o parlamentar dá o caso como superado e acredita que a Batalha do Centro Cívico serviu como lição. “Pontualmente, na área da educação, algumas pessoas ficaram em luto por um tempo, por causa do sentimento que este conflito gerou. Mas a grande maioria superou a questão e o ambiente é outro. O desgaste político hoje é mínimo, quase zero”, resumiu Romanelli. “Ficou uma lição para todos e um aprendizado para não repeti-lo, de como resolver problemas de tensão”, avaliou.
Solução à base de concreto e apertos de mão
Não foi só o tempo. Na avaliação de especialistas, o ex-governador Beto Richa preparou meticulosamente sua estratégia para superar o episódio. “Isso estava no horizonte dele. De que ele poderia, com o ajuste fiscal e com a própria [verba da] previdência, que já tinha sido usada parcialmente, reverter a impopularidade, fazendo obras, melhorando rodovias, asfaltamento. No último ano foi muito sintomático disso”, aponta Luiz Domingos Costa, mestre em Ciência Política e professor da Uninter. De fato, Richa teve agenda cheia em 2017 e 2018, com inaugurações e assinaturas de termos de compromisso quase todos os dias – duplicação de rodovias, revitalização de vias, inauguração de unidades de saúde, de postos da Polícia Militar, para citar alguns.
Mesmo quem integrou a oposição reconhece que o desgaste político do núcleo de Richa é, hoje, bem menor do que se imaginava e deve ter pouco peso nas urnas. Olhando em retrospecto, o deputado Tadeu Veneri (PT) – que fazia oposição a Richa – observa que o ex-governador conseguiu minimizar as manchas do 29 de Abril a partir de uma estratégia de aproximação com prefeitos do interior e com a tentativa de se apresentar como um “executor de obras”. Em outra esteira, o parlamentar avalia que a concessão de cargos para a base aliada também teve peso neste processo. “O governo acabou fazendo uma manobra para diminuir o impacto, quando ele se vale dos RS 6 bilhões que foram tomados do Paranaprevidência para entregar uma obra aqui, outra ali, se aproximando de prefeitos do interior. Isso sem falar na concessão de cargos, para manter certa coesão”, destacou Veneri.
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Beto esteve até em obras das quais não participou. Em abril, poucos dias após anunciar a saída do governo, participou, junto com o prefeito Rafael Greca (PMN), da inauguração das alças de acesso à trincheira da Ceasa, que interliga os bairros CIC e Tatuquara, na região Sul da capital. A obra teve investimento de R$ 10,6 milhões – 100% providos pela prefeitura de Curitiba. “Curitiba é a região mais crítica. O cara no interior às vezes nem sabe o que aconteceu no Centro Cívico. Mas por aqui, as obras feitas pela prefeitura contaram muito com recurso do governo estadual, já na administração Greca, e isso não deixa de ter efeito positivo em um eleitorado com certa visão política imediatista”, aponta Domingos Costa.
O homem do camburão
Na lista de possíveis concorrentes de Richa a uma das vagas em Brasília está outro protagonista do 29 de abril. Atualmente em segundo mandato como deputado federal, Fernando Francischini é tido como postulante ao Senado. Em 2015, o delegado da Polícia Federal ocupava o cargo de secretário estadual da Segurança Pública. Após a operação, no dia 8 de maio, ele foi demitido para aplacar a enxurrada negativa que o episódio trouxe ao governo. À época, Francischini tentou se esquivar da responsabilidade na operação: afirmou que todo o planejamento e execução foram responsabilidade do comando da Polícia Militar (PM) – em carta, coronéis da polícia desmentiram o posicionamento do secretário.
Se em 2015 Francischini parecia querer se desvincular da ação policial daquele dia, parece ter voltado atrás. De lá para cá, o deputado deixou o Solidariedade para se filiar ao PSL, de Jair Bolsonaro, colou a imagem à do presidenciável, de quem é uma espécie de coordenador de campanha, e afinou seu discurso ao tom da direita radical. À jornalista Mareli Martins, em março, Francischini disse que “se fosse secretário [da Segurança Pública] novamente, realizaria tudo igual e da mesma forma”. “Na verdade [a Batalha do Centro Cívico] foi um enfrentamento realizado pela CUT, que é um sindicato do PT, ônibus de ônibus do MST e alguns professores que tinham direito de manifestação”, justificou. “Quem é frouxo e covarde e não sabe manter a lei e a ordem não serve para exercer a função pública. (...) Infelizmente alguns professores se machucaram, mas a polícia dentro do que foi necessário tomou todas as medidas [cabíveis]”, disse.
Indicar seu interesse ao Senado não significa, porém, que Francischini irá realmente tentar a vaga. O delegado pode estar muito mais criando nome para uma futura eleição majoritária ou uma nova vaga de deputado. “Esse discurso radical, de extrema direita, assim como o de extrema esquerda, consegue propagar no sistema eleitoral brasileiro em disputas proporcionais, porque nelas ele precisa de 1% de voto para ocupar uma cadeira, dependendo do partido em que está. No caso do Francischini, por não ter o recall positivo, além do período em que ele esteve na polícia, [um cargo majoritário] é inviável. Como secretário, o que ficou foi a Praça Nossa Senhora de Salete. É diferente do Beto, que tem isso, mas também tem as obras, tem o equilíbrio financeiro, tem a base parlamentar que está levando o nome para o interior do estado”, aponta.
Apenas uma sombra
Se no campo politico o 29 de abril parece ter perdido força, no militar não parece diferente. Principais envolvidos no episódio, os coronéis Nerino Mariano de Brito e Arildo Luiz Dias foram absolvidos pela Justiça Militar. Eles foram os responsáveis diretos pela ação no Centro Cívico. Arildo, inclusive, continua em posição de destaque na corporação. É o subcomandante-geral, abaixo apenas de sua irmã, a recém-empossada coronel Audilene Rocha. A Polícia Militar do Paraná não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem.
No entanto, se para a maioria da população o 29 de Abril não passa de uma sombra sobre Richa e seus aliados, para alguns setores os efeitos do confronto permanecem vivos feito cicatrizes. Entre estes, destacam-se os servidores estaduais e professores e alunos de escolas públicas. A cada “aniversário” da Batalha do Centro Cívico, sindicatos e coletivos promovem atos públicos e publicar documentos como cartas-abertas, relembrando o episódio e seus desdobramentos. “O desgaste com o servidor continua muito presente. É uma lembrança muito forte. Nas universidades, por exemplo, o ‘deputado do camburão’ [Francischini] não entra. Nas cidades pequenas, os deputados da base perderam apoio”, disse Veneri.
É uma marca que fica, ainda que não apareça nas urnas. “No voto, eu olho para o candidato e olho para quem está concorrendo com ele para tomar uma decisão comparativa. Eu posso ter levado umas cacetadas na Praça Nossa Senhora de Salete, mas olho para as alternativas e chego a conclusão de que ali é o único caminho. Aí o meu voto acaba indo na direção contrária da minha avaliação daquela ação. Não dá para reduzir o absurdo que foi aquela operação, aquela irresponsabilidade, somente à avaliação do governo ou resultado do voto. Não precisa dizer que vai ter um efeito na eleição para mostrar que aquilo foi impactante”, resume o professor Emerson Cervi.
À beira do arquivamento definitivo
Em agosto do ano passado, a juíza Patrícia de Almeida Gomes Bergonse, da 5ª Vara de Fazenda Pública, rejeitou a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR) e que pedia a condenação de Richa, Francischini e dos comandantes da operação, por improbidade administrativa. Na ocasião, a magistrada classificou a manifestação como um ato “não pacífico” e considerou que os manifestantes foram responsáveis pelo confronto.
A Promotoria recorreu da decisão, mas o recurso ainda não foi julgado. A ação do MP-PR é amparada pelo depoimento de dezenas de feridos e traz um relatório vasto sobre o incidente – em que foram deflagradas mais de 2,3 mil balas de borracha e 1,4 mil bombas de gás. No total, 2516 policiais militares participaram do cerco à Assembleia Legislativa. “Nós temos a plena convicção de que houve excesso e que os agentes públicos devem ser responsabilizados. Nós trabalhamos incessantemente colhendo provas e há fartas evidências disso”, disse o promotor Paulo Markowicz de Lima.
Na Justiça Militar, todos os processos foram arquivados. Em contrapartida, o governo do Paraná já vem sendo condenado a indenizar pessoas que ficaram feridos no confronto. Segundo a APP-Sindicato, há mais de 150 ações individuais tramitando, com apoio jurídico da entidade. Em uma única decisão, a juíza da 4ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba, Leticia Marina Conte, condenou o Estado a indenizar 19 servidores, com valores que entre R$ 15 mil e R$ 40 mil. A reportagem pediu um levantamento à Procuradoria-Geral do Estado (PGE), mas não houve resposta.
Cenas do 29 de Abril
Passava das 15 horas quando, o promotor Paulo Lima ouviu as primeiras explosões. Da sede do MP-PR – localizada a duas quadras da praça onde os manifestantes estavam acampados – ele pôde ver parte do confronto. Servidores se desesperavam, ante os estrondos ininterruptos e a névoa de gás que pairou sobre aquela região do Centro Cívico. “Parecia uma guerra. As explosões de bombas e tiros duraram vários minutos. Foi uma sensação horrível, uma situação de terror”, disse Lima. “O próprio MP já havia emitido um alerta de risco de confronto, mas fomos ignorados. Quando o conflito começou, o próprio procurador-geral [do MP] foi pra lá, tentar fazer uma intervenção direta”, relatou.
Do lado de dentro da Assembleia Legislativa – onde se votava um projeto de reforma do Paranaprevidência –, as explosões também se faziam ouvir, colocando os deputados em polvorosa. No entanto, o presidente da sessão, Ademar Traiano (PSDB), não quis interromper o debate. “As bombas são lá fora. Não é aqui dentro. Então vamos votar!”.
Para Tadeu Veneri, que instantes antes havia pedido a suspensão da sessão, a reação de Traiano foi a cena mais marcante daquele 29 de Abril. “Foi o mais chocante. Para ele, é como se a gente estivesse em um shopping, em meio a uma cidade em chamas. Como a gente poderia ficar indiferente?”, avaliou. Em seguida, Veneri deixou o prédio e, em meio as bombas, chegou ao caminhão de som e pediu em vão para que se cessassem o confronto.
Para Romanelli, houve excessos de ambos os lados, mas tudo poderia ter sido evitado se a sessão tivesse sido interrompida antes do confronto. “Nós poderíamos ter adiado a sessão por seis horas ou algo que o valha, até que os ânimos fossem contidos. Devíamos ter adotado estratégia diferente. Talvez não tivéssemos tido conflito. Eu quis o adiamento, mas fui voto vencido”, apontou.
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