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Antígona: uma Verdade com mais de 2400 anos

Por Hiago Rebello, publicado pelo Instituto Liberal

Se a Verdade existe – a própria questão sobre a existência da Verdade é autocontraditória e inútil, porém necessária; certos os sofismas precisam ser combatidos –, ela não pode ter “2400 anos”. Ela é atemporal, transcende e atravessa os tempos e se impõe para todo Homem que já viveu, vive ou viverá; contudo, foi há mais de dois milênios que uma grande Verdade foi percebida: existem direitos naturais acima das convenções sociais.

E na Grécia Antiga, na época do fim do apogeu do “Império” Ateniense, um estratego (um “general”) percebeu tal Verdade e a expôs em uma peça de teatro. Sófocles (496-406 a.C), um político ateniense, militar e envolvido com a justiça, o poder e o funcionamento da mais famosa Polis grega da Antiguidade, tendo uma vivência que serviu para tratar de um problema basilar da Justiça: seria o direito positivo, aquele criado pelos Homens, superior ao direito que vem da Natureza?

E o que seriam esses Direitos Naturais? Os direitos que vêm dos deuses, segundo a obra, aqueles que, por conta de suas características suprasociais, transcendem os direitos criados pelas convenções humanas, pois foram estes que as fundamentaram – mas apenas afirmar tal coisa seria inútil. Dizer que algo é porque é, não explica e demonstra absolutamente nada.

Sófocles traça a problemática na vida de uma personagem famosa: Antígona. Filha de Édipo e da própria mãe/avó, ela é fruto de um incesto não proposital, por conta de uma maldição divina. Seus irmãos, Polinice, Etéocles e Ismene, também, compartilham desta herança, que amaldiçoa a família desde o nascimento de seu pai.

A peça é estreada pela primeira vez em 441 a.C, em Atenas. O trabalho de Sófocles se inicia com um dilema: o dever de um sujeito para com sua própria família e a dignidade humana contra um decreto de um rei. Antígona, a protagonista que dá nome à obra, está decidida a passar por cima das ordens de Creonte, seu tio, para não sepultar o corpo de seu próprio irmão, Policines; porém a ordem de Creonte não é em vão: Policines não será enterrado pelo fato de ter sitiado Tebas, para tomar o controle da Polis. Durante o cerco, Policines – com o exército da Polis rival, Argos – acaba não só matando o rei de Tebas, isto é, seu irmão Etéocles, como também arrasa as dependências da cidade. O campo é saqueado, nem os templos dos deuses são poupados ante a ira de Policines.

Portanto, Creonte não proíbe o sepultamento do sobrinho sem motivos. Para o atual rei de Tebas, um traidor que desrespeita até mesmo os deuses, isso sem falar de sue próprio povo e família, não merece um sepultamento adequado. É importante esclarecer que para o grego da Antiguidade a alma não é mais do que um “sopro”, uma sombra do corpo vivo. Ao morrer, indo para o Hades, a alma é apenas uma lembrança do que já se foi. O Homem grego se vê preocupado com o que pode acontecer com seu corpo em terra, pois o corpo é a perfeição humana, se comparado com a alma. E o corpo de Policines será devorado por cachorros e aves carniceiras.

É aí que entra Antígona. Esta se recusa veementemente a aceitar o destino do corpo do irmão. É uma humilhação para com os mortos, que nada mais podem fazer em reação. Antígona pretende enterrar o cadáver do irmão, mesmo que este tenha causado várias vítimas e desastres para Tebas.

A reivindicação de Antígona é simples, porém brutal: a lei de Creonte não pode passar por cima das leis divinas, da legislação que governa o Homem em sua natureza, ou seja: não se deve aviltar a natureza humana. Por mais que Policines tenha cometido os crimes que cometeu, não merecia um tratamento brutal e irracional, para com seu corpo. Os assuntos, com os crimes inclusos, em sua vida estavam selados no momento em que seu espírito deixou seu corpo, no final do duelo com seu irmão.

Outra reinvindicação é para com o direito que Antígona tem, por ser irmã do defunto, de zelar pelo corpo de quem amou. Ao quebrar a lei humana, Antígona apela para uma lei suprema, uma lei que está acima de qualquer ordem terrestre. Creonte, porém, ao quebrar tal lei suprema, apenas causa um efeito inevitável: ele se põe como um deus, se coloca, com seu direito positivado, como uma entidade acima das demais – de um rei, para um cosmocrata.

Porém, Homens não podem ser cosmocratas. Não podem definir suas naturezas, extrapolar a condição humana sem efeitos que colocarão em xeque seu próprio poder, pois este estará excedido.

A disputa entre o Homem mortal e a Lei imortal é o dilema do drama de Antígona. A “demonstração” que Sófocles dará para a quebra da lei Natural é a deterioração de Creonte como pessoa. Creonte usa de toda a cosmovisão e convenções sociais que um grego teria, em sua época. Para se justificar, usa do argumento da “justiça” para com o agressor da Polis, do traidor, do fraticida; usa a autoridade como pai – Hêmon, seu filho, é noivo de Antígona –; sua autoridade como homem, já que ele não admite que uma mulher quebre sua lei, seu moral, sua autoridade e, finalmente, usa seu direito de rei para decretar uma injustiça como se fosse justiça.

O efeito em Creonte é devastador: por se firmar em suas convenções, em seu próprio poder político, em detrimento da natureza da Justiça, deteriorando um Norte que fica acima de qualquer Homem ou sociedade, este monarca se torna um tirano. Antígona é condenada a ser deixada em uma caverna até que morra de fome, depois que seus mantimentos acabarem – e o rei só dá suprimentos para sua sobrinha porque temia o poder do povo e dos deuses, que ficariam irados ao saberem que Antígona fora condenada à morte só porque tentou proteger o cadáver do irmão dos cães e pássaros carniceiros. Nem mesmo o mais renomado e respeitado adivinho grego, Tirésias, conseguiu dobrar a vontade de Creonte. De fato, o tirano de Tebas já se refere à Antígona como um “nada”, pois seu direito positivado quebrara a própria humanidade da criminosa.

O rei se eleva ao lugar dos deuses, usa de tudo o que é humano para determinar e firmar seu poderio. Hêmon, seu herdeiro, é calado, impedido de mostrar e defender a Verdade ante seu pai, pois um filho, pela convenção da época, jamais pode enfrentar seu pai; quando Hêmon encara o corpo de Antígona na caverna, após ela ter cometido suicídio, nada mais lhe resta senão também o suicídio.

A partir este momento, a tragédia grega toma corpo. Antígona se mata, a esposa de Creonte, após saber da morte do filho, também recorre ao suicídio, deixando o próprio rei sozinho. Abalado, Creonte também acaba por se matar.

Toda esta trama trágica ocorre porque a Natureza foi abalada. O efeito em cadeia causado pro Creonte acaba por terminar com a própria vida do rei, sua família, seu poder mortal e positivado. Sófocles possui uma ironia fina: o Homem, a parte mais bela e grandiosa da Criação, de tantas façanhas advindas de sua natureza, acaba por serem contraditórios. Os mesmos Homens que desbravam os mares, criam cidades e dominam os animais, são os mesmos que criam a injustiça, os mesmos que ferem a Natureza que permite e fundamenta as mesmas leis que regem as cidades, as sociedades.

É esta tensão, percebida por Sófocles, que deve ser mirada. Não somos seres absolutamente autômatos em nossas sociedades, em nossas individualidades e culturas. Dependemos de nossas condições ditadas por nossa Natureza, que é por si imóvel e que permite nossa mobilidade, que nos dá um parâmetro fixo para a Justiça, para o certo e o errado. Nenhum poderio humano pode sobrepor tais parâmetros metaculturais sem um efeito negativo, como reação.

Sófocles “deu” ao mundo, 2441 anos atrás, tal Verdade. Infelizmente, na era contemporânea, nunca se atentou tanto com esta Verdade na História, no Homem. Nossa era não é a mais sangrenta, violenta e destruidora atoa – duas guerras mundiais, revoluções sanguinárias e ditaduras assassinas comprovam o quão longe se pode ir, quando se ignora a Natureza do Homem.

Somos testemunhas da tragédia de Sófocles, pois a presenciamos todos os dias. Com seu teatro, com sua mitologia, Sófocles conseguiu alcançar uma realidade que vários cientistas políticos mais modernos jamais chegaram.

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