Em sua coluna de hoje no GLOBO, Roberto DaMatta fala sobre algo que chama a atenção de qualquer brasileiro de classe média ou alta que vem morar nos Estados Unidos: a enorme independência deles em relação aos brasileiros, acostumados a um exército de empregados para os afazeres do cotidiano. Diz o antropólogo:
Nós reclamamos dos privilégios, das generosas e imorais aposentadorias e do exagero dos muitos assessores, secretários, motoristas e ajudas de custo ligados a cargos públicos, mas jamais cogitamos de dispensar os nossos criados. Um dos meus vizinhos falava com ironia em folha de pagamento, tantos eram os seus serviçais.
Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a mais absoluta ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América existem cleaning ladies — faxineiras horistas — mas são raras as empregadas multiuso (babás, cozinheiras, confidentes…) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo está sempre mudando!
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De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não fosse o empregado; e da “dona da casa” feminista e emancipada, se não fossem as suas criadas…
Em seguida, DaMatta relata alguns casos específicos, que mostram a diferença cultural entre os dois povos. Essa diferença é percebida por todo brasileiro que vive aqui nos Estados Unidos. É gritante! Uma família rica no subúrbio de uma cidade americana vive basicamente da mesma forma que uma família normal, de classe média.
O sujeito pode ter uma Ferrari na garagem, uma casa grande, mas é provavelmente ele que cuida do lixo, da louça, das roupas. Alguns podem contratar umas cubanas, especialmente na Flórida, é verdade. Mas dificilmente será em tempo integral, para fazer de tudo, como costuma acontecer no Brasil, onde há dependência para empregada doméstica até em apartamento de dois quartos, além de elevadores de serviço para segregar os empregados.
É realmente como vemos nos filmes: um casarão de “bacana”, mas nenhum empregado fixo, uma baby-sitter que é a filha adolescente da vizinha contratada por hora para ajudar com os filhos pequenos, e talvez uma firma de faxina que faz o trabalho mais pesado semanalmente. E só. Para eventualidades na casa, há o “handy-man”, mas a maioria aprende a se virar no básico, a consertar coisas, fazer reparos etc.
E essa autonomia vem desde cedo. As crianças aprendem que precisam ajudar, participar, cuidar da louça, arrumar o próprio quarto, ser independente. No meu condomínio, canso de ver crianças de uns quatro anos pedalando sozinhas, alguns vão para a escola dessa forma nessa idade. Filhos de ricos trabalham como caixa de supermercado sem qualquer constrangimento ou vergonha, pois é trabalho honesto e estão absorvendo valores importantes.
Não é crime, claro, ter vários empregados, e existem muitos fatores que explicam esse hábito no Brasil, sendo o principal deles o custo mesmo. Como há um exército de desempregados, gente com pouca ou nenhuma qualificação, o salário desse serviço é baixo. E não se muda isso com lei, com mais privilégios para as domésticas, como pensa a esquerda. Isso gera apenas mais desemprego ou informalidade.
É uma questão cultural também, além do mecanismo de incentivos. Muito americano poderia perfeitamente pagar para ter empregados fazendo suas coisas, mas isso nem passa por suas cabeças. Algum economista liberal poderá argumentar que isso é desperdício, pois seu tempo seria melhor empregado em atividades em que tem vantagem comparativa, mas esse argumento economicista ignora outros aspectos da coisa.
O historiador Victor Davis Hanson, por exemplo, acredita que manter atividades braçais caseiras, ou na fazenda em seu caso, ajuda a manter o sujeito humilde e com os pés no chão, sem se perder em abstrações típicas da elite intelectual que vive numa bolha, sem contato com o mundo real. Os filósofos gregos eram também soldados, como Sócrates e tantos outros. DaMatta conclui:
Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de ter alguém que faça coisas para nós, garantindo o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que, sem criados, não sabemos quem somos? Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.
A esquerda caviar adora odiar a América, terra do capitalismo ganancioso, da “exploração” em nome do lucro. Essa turma ignora que é aqui onde se encontra mais igualdade, não material, pois somos todos diferentes em nossas habilidades e produtividade, mas em tratamento ou oportunidade básica de vida. Com crédito farto e barato, menos burocracia e regulação, quem quer trabalho normalmente o encontra, e pode levar uma vida razoavelmente digna.
Pode ter um carro decente na garagem, uma casa financiada por hipoteca acessível, e será cidadão da mesma forma que o outro, numa casa maior e com um carro mais luxuoso, mas que oferece basicamente o mesmo fim. E ambos vão tirar o próprio lixo, cuidar da própria roupa, lavar a própria louça na máquina, colocar os próprios filhos para dormir, depois de buscá-los no colégio (ou quando chegarem no mesmo ônibus). Um será apenas Bill, e o outro Paul.
Talvez essa visão igualitária seja mesmo insuportável para membros da elite “progressista” brasileira, acostumados a um séquito de empregados, que além de fazer tudo para eles, ainda os tratam com enorme deferência aristocrática, massageando o ego de quem precisa se sentir poderoso e superior. Deixo isso para reflexão, especialmente aos que detonam o capitalismo americano. E agora preciso ir, pois tenho ainda que fazer meu almoço, lavar minha roupa, colocar o bebê para dormir e retirar o lixo…
Rodrigo Constantino