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O Brasil precisa declarar guerra aos privilégios do setor público

A percepção de que há privilégios demais concentrados no setor público é bem antiga, e foi o pilar da campanha eleitoral bem-sucedida de Collor, com sua “caça aos marajás”. Mas a triste realidade é que é muito mais difícil fazer do que falar. Na hora H, de efetivamente cortar essas benesses todas do funcionalismo, o poder dos grupos de interesse fala mais alto, e o povo continua pagando o pato.

A bola da vez é o auxílio-moradia de juízes, e a coisa virou assunto nacional, pois até o juiz Sergio Moro, adorado pela imensa maioria da população, recebe o benefício e ainda o justifica como uma espécie de jeitinho para aumentar o teto salarial congelado. Se é para atacar Moro, então os jornalistas de esquerda estão dispostos até a atacar os privilégios do setor público, que costumam defender em condições normais.

Que seja! O motivador pode não ser o mais nobre, mas qualquer liberal deve celebrar que finalmente se está jogando luz sobre esse problema. Não dá mais para insistir num modelo de regalias para funcionários públicos à custa do povo trabalhador. E o Poder Judiciário, como sabemos, é aquele com mais discrepâncias, ostentando vantagens incompatíveis com a realidade brasileira.

Algumas colunas de hoje apresentam dados e argumentos sobre esse abismo que se criou entre setor público e iniciativa privada, que é quem paga a conta no fim do dia. O professor Denis Rosenfield, por exemplo, fala da questão moral desses privilégios todos, e chama a atenção para o contraste entre discurso moralista dos juízes de um lado e regalias indecentes do outro, no que resumiu como um “teatro da imoralidade”:

Pena que a discussão sobre a reforma da Previdência enverede para questões menores, referentes às mais diversas formas de interesses particulares e partidários, quando está em questão o interesse coletivo. Perde-se a noção de bem maior, de bem público, como se os bens particulares devessem primar sobre o todo. São os privilégios defendidos com tanto afinco pelas corporações do Estado, como se eles se confundissem com o atendimento das demandas de seu estamento burocrático, seja no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou no Ministério Público. São também os interesses de políticos e partidos, que barganham suas demandas para a aprovação da reforma como se, de novo, o bem menor devesse ter primazia sobre o maior.

[…]

Um exemplo atual, fora do escopo da reforma da Previdência, é bastante ilustrativo. Juízes e promotores, em suas várias instâncias, defendem o auxílio-moradia, superior a R$ 4 mil para cada indivíduo. Na origem, tal benefício era perfeitamente justificável, pois se destinava a juízes, juízas, promotores e promotoras que, para o exercício de suas funções, se haviam deslocado para outros municípios. Necessitavam de moradia nessa sua etapa de transição. Nada havia que agredisse a moralidade.

Ora, para o atendimento de demandas corporativas, esse benefício foi estendido a todos, independentemente de terem casa própria e de atuarem em seus próprios municípios. Como se não fosse suficiente, há casos de casais de juízes e promotores que ganham duas vezes o mesmo auxílio, vivendo sob o mesmo teto. Seus defensores vêm a público dizer que isso é legal. Pode até ser. Mas tal benefício é moral?

A situação torna-se ainda mais esdrúxula na medida em que são os mesmos juízes e promotores, beneficiários de tais privilégios claramente imorais, que enchem a boca para se declararem defensores da moralidade pública. Como assim? Pessoas que usufruem privilégios manifestamente imorais podem colocar-se na posição de representantes da ética? Não há aí flagrante contradição?

Nas palavras duras, porém verdadeiras do autor, “O Estado foi, nessa perspectiva, capturado pelo estamento burocrático, embora essa captura se apresente sob a forma da moralidade e do bem público, apesar de seus agentes não deixarem de atuar sob a forma da imoralidade no atendimento de seus interesses particulares, seus privilégios, pondo o bem próprio acima do público”.

Raul Velloso traz à tona alguns números do setor público que deveriam produzir calafrios em qualquer pessoa minimamente razoável, e o principal vilão é, uma vez mais, o setor público gastador:

Mais que nunca, o problema econômico número um do país se chama desequilíbrio fiscal. Inimagináveis até bem pouco, déficits primários gigantescos — cálculo em que não se consideram os juros e as amortizações de dívida como parte da despesa — se aproximaram dos R$ 200 bilhões anuais na União.

Só que, na raiz de tudo, para quem ainda não percebeu isso com clareza, estão os elevados níveis de gastos em benefícios previdenciários, mercê das elevadas taxas de crescimento observadas nesses mesmos itens há bastante tempo. E isso ocorre mesmo antes do agravamento da questão demográfica, que, mais à frente, colocará tintas ainda mais vermelhas nas tabelas respectivas.

Lembrando que há a Previdência dos servidores públicos, de um lado, e a Previdência Geral (INSS), do outro, trago aos meus leitores a constatação de que os gastos totais com a primeira passaram de R$ 205 bilhões em 2014 para, pasmem, R$ 284 bilhões no ano passado, distribuindo-se da seguinte forma. Nos estados, saíram de R$ 109 bilhões para R$ 163 bilhões; no regime dos servidores da União, de R$ 96 bilhões para R$ 121 bilhões. Os números seriam ainda mais escandalosos se tivesse conseguido obter, e aqui adicionar, os dados relativos à totalidade dos municípios. Mas, como não consegui deduzir as contribuições dos servidores, hoje certamente com alguma expressão e dada a escassez de estatísticas, a subestimativa do custo total com Previdência para a União, estados e municípios fica atenuada.

Paulo Guedes também trata do mesmo tema em sua coluna logo acima no GLOBO, lembrando de quando preparou um plano de governo liberal para um candidato de 1989, Guilherme Afif Domingues, e que poderia ter poupado trilhões para gastos sociais apenas com as privatizações defendidas naquela época. Guedes conclui:

Por que o funcionário público acha que deve ter direito a essa estabilidade, independentemente da qualidade do serviço prestado, e a essa indexação salarial, se o povo trabalhador perde poder de compra ano após ano por culpa justamente do governo? Leandro Colon, na Folha, afirmou que essa linha de argumentação dos juízes beira o escárnio:

Dois argumentos de defesa predominam. Um é que o privilégio é legal. O outro é que a remuneração da categoria está defasada e o benefício é um jeitinho para cobrir o buraco. Esse segundo foi usado por Sergio Moro, que ganha auxílio, apesar de ser dono de imóvel em Curitiba.

Nenhuma versão convence. A da defasagem beira o escárnio. É um salvo-conduto para que os brasileiros com salários supostamente desvalorizados deem de espertos, driblando a moralidade para engordar o seu contracheque no fim do mês.

O próprio editorial da Folha também bateu nos “privilégios da casta”:

Não há, decerto, justificativa republicana para privilégios do gênero, artifícios burocráticos com roupagem legal que têm o mero objetivo de disfarçar aumentos de renda e despesa pública.

[…]

Nem se mencionem os casos de extravagâncias como férias extensas, carros, motoristas e aposentadorias especiais, tanto em valor quanto em precocidade.

Note-se que apenas o valor do auxílio-moradia, quase de R$ 4.400 ao mês, supera os rendimentos do trabalho de cerca de 90% da população brasileira.

A República pode ser uma ideia estranha para a casta, assim como o é o conceito de escassez de recursos. Não raro, magistrados concedem direitos, para si ou outros, que extrapolam a capacidade orçamentária dos governos.

[…]

Não se discute que magistrados e outros funcionários de alta qualificação devem ser bem remunerados. Entretanto é preciso que se levem em conta os limites da renda do país e da arrecadação tributária. Como proporção da economia nacional, o Judiciário brasileiro está, como mostram as estatísticas, entre os mais caros do mundo.

Repito: mesmo que o intuito seja enfraquecer o juiz Moro, esses ataques todos aos privilégios do setor público estão totalmente alinhados com a pauta liberal, e devem ser reproduzidos pelos liberais. O momento para mudanças e reformas surge às vezes por razões comezinhas, mas não se pode desperdiçar uma oportunidade de escancarar o elevado custo dessa casta privilegiada.

Ninguém nega que há servidores competentes e sérios, que fazem um bom trabalho, e o próprio nome de Moro é um claro exemplo. Mas isso não justifica a manutenção desses privilégios, que custam tão caro ao país, ao pagador de impostos. E a força dessa casta fica evidente na hora de tentar reformar a Previdência. Infelizmente, o funcionalismo está vencendo a guerra, como mostra essa reportagem da Gazeta do Povo.

Discursos populistas à parte, resta perguntar: quem vai enfrentar a casta privilegiada de verdade? Quem vai promover uma caça aos marajás para valer?

Rodrigo Constantino

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