No início dos anos 2000 – assim que a Lei Antimanicomial (10.2016/2001) deu cabo aos chamados hospícios, sanatórios e manicômios – veio à baila uma história triste de contar: não havia hospital psiquiátrico nessa pátria mãe gentil que não abrigasse dezenas e dezenas de pacientes abandonados pelos seus. Parente, só em Quixeramobim. Apenas no Hospital Nossa Senhora da Luz, em Curitiba, dizia-se, chegou-se a 100 pessoas ao vento – a instituição que se virasse. Ponha-se na lista a cota do Hospital Bom Retiro. Muitos desses homens e mulheres passaram a maior parte de sua existência internados, tratados como doentes, não raro sem que houvesse um diagnóstico que justificasse o asilamento. Alguns tinham... epilepsia.
Mesmo sem vínculos familiares, profissão, instrução e já envelhecidos, tinham direito a uma casa, com chave para entrar. Pois se deu um milagre por força da lei. Um dia, viram-se convidados a pegar seus poucos pertences e a se mudar de prédios gigantes, brancos e cheirando a éter, onde muitos moraram por mais de 50 anos, para viver em pequenas moradias de bairros, com vizinhos e onde, do quintal, se pode sentir o cheiro da pipoca saído do carrinho estacionado na praça. Imaginar essa cena é apostar um bolão que ainda vai dar filme.
Não há psicólogo, médico, enfermeiro, assistente social ligado a programas de saúde mental que não tenha planejado – ainda que em segredo – escrever sobre o “dia de mudança”. Foi para não esquecer. Há quem se emocione ao lembrar. Em especial porque, à revelia das apostas cinzentas, os institucionalizados fizeram das tripas coração para recomeçar. Contaram só com eles mesmos e com os heróis anônimos da saúde pública.
Não à toa tantos desses profissionais de saúde dizem ter lavado e enxaguado a alma com cândida a cada linha do livro Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex – dissecação sem meios tons sobre a crueldade do sistema manicomial do país. Como dizia minha avó – alguém vai ter de dar contas a Deus. “Tudo o que Arbex escreveu em alguma medida a gente viu”, reforça a psicóloga Diana Coutinho, da Secretaria Municipal da Saúde, coordenadora das cinco residências terapêuticas de Curitiba. São casas de gente como a gente, onde vivem pouco mais de 40 ex-pacientes um dia deixados em hospitais psiquiátricos. O que se vê ali são contos de luz para ler na noite de Natal.
Esse povo tido como “sem juízo” desafia as profecias, búzios e bulas
A propósito, nesses locais não imperam gritos, ruídos de correntes, enfermeiras amedrontadas ou qualquer baixaria que habite nosso imaginário sobre os antigos sanatórios. São lugares de cotidiano – tem apito de panela de pressão. E o cotidiano tem poderes curativos. É fato que nas residências – a da Boa Vista, Hauer, Pinheirinho, Mossunguê, Portão – existem momentos de baixo astral. Pode começar com um viral – alguém reclama a má sorte; alguém, direto do sofá, lamenta a solidão; um outro decide lamber as feridas. Mas nada que não aconteça em qualquer endereço, durante o Jornal Nacional.
No geral, esse povo tido como “sem juízo” desafia as profecias, búzios e bulas. Só fato de rirem juntos é um atestado de sanidade mental. “Eu não sou inteligente, eu sou bobinho”, debocha Olandino, 67 anos, 12 de internamento, ao ser apresentado como o intelectual da Residência Terapêutica Tarumã – que, à revelia do nome, fica no Bacacheri. É verdade. Olandino “arranha” várias línguas, aprendidas à custa de horas assistindo a filmes franceses e americanos. Na vida como ela é, mais importante do que sua cultura linguística é a habilidade que desenvolveu para passar o café da tarde. Para tudo nessa hora. Os 11 moradores – uma família com membros entre 50 e 76 anos e um cachorro, Ermione – sentam com a turma da prefeitura que atua lá e todos desfrutam da mais sólida tradição curitibana.
“O que admiro nessa turma? O grau de aceitação que eles têm dos defeitos dos outros. Quando vou ver, estão se ajudando”, resume a psicóloga Elaine Venceslau Tosin, 43 anos, coordenadora da residência e membro do programa de saúde mental do município desde o início dos anos 2000. Gosta da função. E olhe que é uma lenha: ela tem de ajudar a juntar notinhas fiscais dos gastos dos moradores; lidar com as manias de alguns; gerir os conflitos internos e... administrar a sanha dos vizinhos.
A Residência Terapêutica Tarumã esteve em uns tantos bairros antes de chegar ao emergente Bacacheri, há um ano. Despertou curiosidade instantânea. Vinha gente na porta perguntar se era um lar de idosos – interessados em deixar lá a sogra. Não, não era. E a cada vez que alguém batia palmas no portão, dá-lhe sentar para explicar “do que se trata!”, sabendo que os olhos saltariam do rosto, qual desenho animado, assim que a palavra “psiquiátrico” saísse da boca. Gastou mais saliva do “alto-falante” da XV.
De vez em quando, toca o telefone e percebe que valeu cada gota. “Oi, Elaine, liguei para avisar que Jorginho comprou mais dez paçoquinhas só esta semana”. Quem fala é guria da banca de revistas. Ela agora conhece os moradores da casa e entende que avisar que estão se excedendo nos gastos – e nos doces – é uma forma de ajudar. O menino do balcão da farmácia faz o mesmo. A moça da padaria segue atrás. A vizinha versada em terapias holísticas – aporrinhada com sinais de fumaça que viviam lhe mandando os fumadores compulsivos da residência – bateu na porta para reclamar. Acabou por se tornar uma entusiasta da causa, oferecendo-se fazer massagens gratuitas antitabagismo.
Os níveis de independência dos moradores variam. Tem quem só saia do portão para fora na companhia de um cuidador. Tem quem tome ônibus e venha para o Centro, dar um rolê. Há mesmo gente como Teresa Alves, 75 anos, uma viajante experiente. Sua última peripécia foi conhecer Gramado (RS), numa excursão. Agora quer sossegar “por uns meses”. A exemplo dos outros, cultiva um cantinho para chamar de seu. É “lá atrás”, longe do barulho, no silêncio possível entre ela, um cinzeiro gigante e um velho televisor. Perto, Paulo planta uma horta. Por aí vai. Do ponto de vista do cantinho, a Residência Terapêutica são 11 casas em uma.
Nos quase 15 anos em que as moradias foram implantadas, um dos esforços de quem atua lá é recuperar memórias dos antigos internos. Tarefa para o Superman. Com o distanciamento das famílias – e dada a dor que o passado representa –, muito se perdeu, muito se calou. Teresa, 30 anos de Hospital Nossa Senhora da Luz, é reticente em falar de qualquer coisa que não seja seu último passeio. Tem flashes, só. Conta que nasceu na zona rural da Lapa, de uma família de seis irmãos, e que foi dada como empregada a um casal idoso. Quando os patrões morreram “eu já era velha, tinha mais de 20 anos”, acabou hospitalizada. Seu problema – “três ataques por dia”. Ninguém apareceu para buscá-la. Como cozinhava bem – assina uma famosa farofa de repolho – e circulava com facilidade entre os abandonados como ela, “foi ficando”.
Lamenta a confusão: “Passei muito tempo num lugar de gente que não regula direito”. Diz que desistiu de sonhar, “pois nada que a gente sonha se realiza”. Fosse uma alienada não seria tão realista. O mesmo se diga de Roaldo Neves, 62 anos. Cada confidência, uma navalha: Primeira internação: 9 anos. “Disseram que eu não conseguia me comunicar. O que eu poderia dizer aos adultos quando tinha essa idade?”, provoca, ao narrar a maratona de meio século de internamentos contínuos.
Pela lógica, as residências vão acabar. Onde quer que existam, seus moradores envelhecem. As instituições, felizmente, rarearam. Virão outros desafios. Ainda assim, vai ser uma pena se esse grande fato de saúde pública – o capítulo bom de uma história ruim – não ficar registrado como uma sábia terapia de forno, fogão, afeto e um cantinho para Teresas e Roaldos.
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