No segundo volume de suas memórias, Pedro Nava, atônito e entre parênteses, perguntava a seus leitores: “(onde estão os frutos d’antanho?)”. Ele se referia a uvaias, jambos, abius, jenipapos e sapotis. Admito não conhecer essas frutas, ao menos no sentido bíblico, mas compreendo a perplexidade do autor, abandonado pelos perfumes e sabores de sua infância. Também sinto as minhas faltas, e uma delas, nem sei se original, me impele a atualizar a dúvida de Nava, transplantando-a do campo memorialístico para o brejo policialesco, bem menos fértil. Que fim, pergunto eu, levaram os ladrões de frutas?
Não faz muito tempo, o pomar ainda era uma espécie de território sagrado, uma posse que precisava ser mantida em estrita e respeitosa vigilância. Dia sim, dia não, e não raro à noite, o lugar podia ser invadido por bandos de meninos vadios, de grande fibra e péssimas intenções. Lá em casa, meu pai dava o alarme e corríamos expulsar os intrusos, feito dois macacos suicidas. Eram guerras teatrais, travadas com inimigos mais de fantasia que de sangue. Garanto, aliás, que jamais enfrentamos qualquer resistência. Surpreendidos, os ladrões fugiam aos pulos, só revidando a distância, com mímicas inócuas, simiescas, e meia dúzia de palavrões recém-aprendidos.
Nossa preocupação, é bom que se diga, nem era com a perda das frutas. Defendíamos a integridade das plantas. Porque os saqueadores não as poupavam. Aqueles eram ataques empreendidos sem amor, furtos de paixão, isso sim, movimentos de afronta e gula em que as únicas vítimas eram as árvores e alguns bichos.
Descendemos de uma longa linhagem de pobres bandidos, tão famintos quanto ingênuos e românticos
Nossas pereiras, ameixeiras ou jabuticabeiras, escaladas sem perícia ou feridas a vara, sempre acabavam com um galho a menos, o caule comprometido, e um ou outro ninho de pardal despejado pelo chão, em meio à fermentação rasteira dos frutos maduros demais, bicados de passarinho.
Em termos quantitativos, a safra só era importante porque, quando farta, podia ser repartida entre um número maior de visitas. Amigos, parentes, vizinhos, todos ganhavam o seu farnel, mesmo que não o merecessem. Um costume que permanece vivo. Nos terminais de ônibus de Curitiba, nas estações-tubo ou na Praça Rui Barbosa, reparem: aos domingos, ainda é relativamente fácil encontrar gente carregando, em sacolas plásticas, as mimosas colhidas no quintal de suas mães, sogras e avós. No outono, este é um de nossos principais suprimentos afetivos, uma provisão de reminiscências doces e domésticas contra a amargura dos dias da semana, a vida adulta levada em apartamentos sem jardins, vilas ou ruas pavimentadas, sem terra que possamos penetrar.
Vale lembrar que nossos primeiros pais foram ladrões de frutas. Descendemos de uma longa linhagem de pobres bandidos, tão famintos quanto ingênuos e românticos. E por isso volto aqui ao Pedro Nava, que citei tão apressadamente lá no começo desta crônica. Criança, ao percorrer a chácara de sua avó materna, Inhá Luísa, atrás de “frutas proibidas”, Nava dizia se sentir como certo “príncipe perdido na floresta paradisíaca”. Um nobre aventureiro em busca da própria perdição.
Mas quem, afinal, entre nós, ainda rouba frutas? Nunca mais ouvi meus pais se queixarem da ação daqueles ladrõezinhos. Suas árvores crescem em paz e os sabiás solfejam, dizendo amém. Os transgressores infantis decerto não veem mais graça nas esferas multicoloridas que pendem, cheirosas, sobre os seus bonés; nelas, não restou qualquer curva que os atraia. Viraram tentação morta, um código cuja chave de decifração se perdeu. Mesmo assim, eu me pergunto: se não se roubam mais pitangas, o que é que roubam, hoje, os inocentes?
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