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Era tão comum menino matar passarinho. Hoje vocês vão dizer que não, mas era. Entre meninos e passarinhos parecia haver certa atração ancestral, uma inveja recíproca, uma dor que vinha de longe e com tanta força que não podia ser relevada. Não sei, era como se disputassem um mesmo trono na natureza, a criança e a ave, o canto de um sabiá pela manhã lembrando um chamado de guerra, uma convocação ao combate. Os meninos o ouviam e já saltavam apanhar a setra, botar no ombro a espingarda de pressão, os chumbinhos esquentando no bolso. Corriam sondar a arapuca armada na tarde de ontem, aquele pequeno prisioneiro na neblina. O que fazer com ele, soltá-lo ou submetê-lo? Não, os meninos não tinham o céu, mas decidiam que destino dar aos pássaros.

Hoje vocês vão dizer que não, e realmente as coisas mudaram, o convívio entre crianças e passarinhos se tornou raro, são mínimas as chances de confronto. Por isso me espantei ao encontrar, semana passada, na Santos Dumont, a Pracinha do Amor, um menino debruçado sobre o cadáver de um laranjeira. Já tinha visto o piá por ali antes, andando de bicicleta ou jogando bola sozinho, praticando embaixadas, driblando uma zaga de vento. Devia ter 10 anos, não mais que isso e, quando nos cruzamos, sustentamos o olhar por uns quatro, cinco segundos, uma eternidade para a concentração infantil. Eu estava curioso e ele, logo vi, ansioso para falar comigo, revelar algum prodígio.

Oi, eu o cumprimentei, e ele me respondeu, circunspecto, oi. Era óbvio que vivia um momento solene, e fazia questão de demonstrá-lo, era fácil ler em seu rosto o respeito que sentia pela morte estendida diante de nós.

Perguntei o que tinha acontecido com o passarinho e, sem rodeios, ele falou: "Morreu". Fiquei quieto, e me mantive assim por um bom tempo, na esperança de que ele me explicasse como e por que o bicho havia morrido. Queria que me apontasse um culpado, me contasse a história de um crime, pois aquele também parecia ser o seu desejo. O menino entendeu o meu silêncio e as minhas intenções, mas tudo que disse foi: "Não fui eu".

Continuei na minha, embora tivesse mais perguntas engatilhadas. Por exemplo, o que o menino planejava fazer com o sabiá, enterrá-lo? Ele me ouviu sem olhar para mim. Puxou do bolso uma fita vermelha, bem fina e cacheada, dessas de enfeitar presente. Com a fita, enlaçou uma das pernas do animal. Enquanto dava o nó, com delicadeza, respondeu: "Não, não vou enterrar". Levantou-se, limpou a calça gasta, o pó dos joelhos, apanhou o sabiá amolecido, aquele pescoço pendurado e tão triste, e o escondeu dentro da jaqueta de náilon. Depois assoprou a penugem presa entre seus dedos e anunciou, muito sério e seguro: "Vou pra casa, ressuscitar esse passarinho".

Consegui disfarçar a minha surpresa, mas não a minha incredulidade. Quis saber como ele faria aquilo. É segredo, rebateu o menino. Mas me pediu atenção: se nos próximos dias eu avistasse algum sabiá laranjeira voando pelo Centro de Curitiba, com uma fita vermelha na perna, eu saberia que o procedimento havia dado certo.

Não sei se funcionou, e repasso a vocês a minha expectativa. Duvidei dos poderes do menino, confesso, mas isso não significa que eu não esteja torcendo por ele. É um milagre que espero sem ansiedade, sem fé, sem preocupação. Mas com sinceridade. E torço para que, na madrugada de amanhã, ou depois, ou ainda mais tarde, daqui a mil anos, tanto faz, aquele mesmo sabiá me acorde no meio da noite, com o seu doce canto de guerra, sua voz de flauta prenunciando novas luzes e lutas, num mundo onde os meninos ressuscitam passarinhos.

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