A tortura que quase cegou Moisés
Foi pela rádio que Moisés Jakobson ouviu as primeiras notícias da invasão dos alemães à Polônia. Hitler falava com hostilidade dos judeus e ele, com a família, escutava tudo com muita atenção, afinal a guerra era algo estranho para quem vivia em uma cidade formada por apenas 60 famílias. Moisés morava em Lazy (Polônia) e, numa tarde, enquanto andava pela rua, presenciou a passagem dos alemães em direção à União Soviética. A mãe, os quatro irmãos e ele (o pai já havia morrido) começaram a desconfiar. Mudaram para a casa dos tios em outra cidade. "Mas quanto tempo é possível ficar em uma casa de outra família? Decidimos voltar." O retorno não poderia ter sido pior. Os dois irmãos mais velhos foram levados para campos de trabalho forçado e Moisés, o caçula, teve de prestar serviços aos nazistas enquanto eles estavam na cidade. Carregava água e limpava o sapato deles. "Um dia me deram uma pá e mandaram eu e outros jovens segui-los. Eles tinham encontrado um rapaz escondido. Fomos até um bosque, marchando, e lá atiraram contra o menino. Tivemos de abrir a cova dele."
Na cidade sitiada, Moisés também viu os soldados alemães pegarem à força seu vizinho. "Havia começado a perseguição aos intelectuais e eles o levaram só porque usava óculos. Ele era apenas um alfaiate." Entre uma andança e outra pela rua nos momentos de folga, gostava de bisbilhotar. Moisés deixava, a pedido da mãe, trouxinhas de comida na casa das pessoas que eles sabiam que já passavam fome porque não haviam estocado comida.
Numa madrugada, a mãe de Moisés, as duas irmãs e ele foram acordados pelos alemães que adentraram na residência com brutalidade. "Eles gritavam fora em alemão. Eu não entendia, mas pelos gestos podia compreender o que era. Em cinco minutos saímos." Na rua por onde antes brincava, Moisés se encontrou com as famílias da vila expulsas de seus lares. Todos foram jogados em vagões de gado e levados a um campo de triagem. "Quando chegamos, eu segurava forte na mão da minha mãe. Eles tinham uma varinha com a qual apontavam quem deveria ir para a direita [câmara de gás] e quem deveria ir para a esquerda [trabalho forçado]. Eu fui para a esquerda. Elas, para a direita. Nunca mais as vi. Minha irmã tinha filhos pequenos e um deles levava o nome de meu pai, Bernardo."
A vida de Moisés até 1945 foi em quatro campos de trabalho forçado. Dormia em barracões de madeira de 6m x 30m com 180 pessoas. Mas esta massa humana não bloqueava o vento congelante. Nessa vida, ele conheceu judeus que viraram soldados aliados dos nazistas em troca de melhores marmitas: aos prisioneiros, quando não havia sopa rala, era um pedaço de pão com morcela escura. "Quase morríamos de fome. Se desse para roubar grama pra comer, roubávamos." Ele perfurou poços, trabalhou em olaria, na construção de estradas. Os campos de trabalho eram vinculados a empresas privadas como a Krupp. "É incrível de acreditar, mas quando fui esses tempos à Alemanha, vi essas empresas ainda em funcionamento."
As humilhações eram constantes. Quando mudava de campo, Moisés era vistoriado até nas partes íntimas. Depois de um dia intenso de trabalho, ele lembra que retornava ao barraco para dormir, mas antes gastava um tempo matando os piolhos grudados pela roupa. "Era uma praga. Tinha também os chatos, que entravam nas partes proibidas [íntimas]. As unhas ficavam cheias de sangue." Ele testemunhou colegas receberem 25 chibatadas por transgressão às regras, mas, também teve seu dia de castigo por ter trocado cigarros por batatas e falado em russo com outro colega, no campo de Waldenburg. "Entraram no barracão com cachorros e mandaram que todos saíssem. Só eu deveria ficar. Um deles me deu um soco no estômago para eu me abaixar e aí veio outro com o joelho no meu rosto. O cão avançou sobre mim. Perdi uma das vistas na hora." Moisés não podia se levantar, mas um deles gritou "desapareça". "Eu mal andava, mas corri o quanto pude."
Foi nesse último campo também que ele perdeu a identidade e virou um número, vestido com uma roupa listrada e com um tamanco de sola de madeira amarrado aos pés por tiras de tecido. "O frio era tamanho que colocávamos sacos de cimento por baixo do pijama para aguentar."
No final da guerra, ele tentou voltar para casa com um dos irmãos que reencontrara, mas ela já estava ocupada. O irmão decidiu ir para Israel. Ele foi para a Alemanha, onde casou e alugou um apartamento. A vida, porém, já não era mais a mesma. "Haviam cortado minhas asas, a minha esperança." Ele e a mulher sonhavam vir ao Brasil, mas não conseguiram visto (Getúlio Vargas tinha proibido a entrada de judeus). Foram para a Bolívia, onde trabalharam numa serraria até conseguir meios de passar para o lado brasileiro.
Há alguns anos, ele voltou para a Polônia porque queria ver o túmulo do pai. Mas nem os defuntos os alemães respeitaram. "Fiquei sabendo que, durante a guerra, onde meu pai estava enterrado os alemães fizeram uma vala coletiva."
Iván optou pela lavoura, onde não se passava tanta fome
Quando os ponteiros do relógio marcaram 8 horas da manhã, no dia 4 de agosto de 1942, Iván Bojko foi obrigado a tomar uma decisão importante: dizer aos alemães que esperavam à porta de sua casa que ele iria no lugar da irmã mais velha para os trabalhos forçados. Os nazistas se deram por satisfeitos. "Não deixaram nem eu me despedir." Ele foi levado de uma pequena vila no estado de Ternopil (Ucrânia) para Lviv. Ali, os trens cargueiros esperavam jovens como ele, que tinha 16 anos, para uma viagem até o campo de triagem. "Jogaram-nos dentro dos vagões. Tinha criança, mulher, idoso, tudo junto e bem apertado." Viajaram até Berlim e chegaram a um campo de passagem. "Tinha aqueles arames farpados e nós fomos colocados em fila como produto à venda para as fábricas." Na seleção, Iván recebeu um documento que dizia que deveria ir para uma mina de carvão. Saiu caminhando até perto da cerca farpada e, em uma conversa rápida com um polonês, descobriu que não passaria fome se fosse para a lavoura. "Ele me dizia que na lavoura eu poderia até ser feliz, porque nas cidades, perto das fábricas, havia muitos bombardeios e faltava comida." O medo falou mais alto. Voltou para a fila de triagem, no meio de uma família recém-chegada. Foi salvo por uma das secretárias. "As duas me olharam e uma disse: Você já passou por aqui. A outra rebateu coloca no documento dele lavrador."
Viajou com outras pessoas mais uns 50 quilômetros. Desceu na fazenda que tinha no portão de entrada o símbolo dos nazistas. Era ali onde deveria começar os trabalhos forçados. "Nos esperavam como se fôssemos gado. Eu sem sabia o idioma deles, aprendi a dizer apenas sim senhor." Ele dormia na cocheira, levantava às 4 horas e ia correndo para as estrebarias para limpar e cuidar dos cavalos. Estava proibido de pegar até as frutas podres do chão, mas lembra que, quando a fome apertava, roubava qualquer coisa que era dada aos cavalos para forrar o estômago. Ficou ali por um tempo até que o Ministério do Trabalho alemão achou que sete homens trabalhando apenas em uma fazenda era demais. Os nazistas foram buscá-los.
Numa outra seleção rápida, Iván pode contar outra vez com a sorte. "Estávamos em sete e dois iriam para outra lavoura. O restante foi para as fábricas." Na nova fazenda, ele foi melhor acolhido. A proprietária tinha 80 anos e era bondosa. Deu-lhe cama com cobertor e uma alimentação melhor. Nesse meio tempo, as irmãs de Iván fugiram para a Rússia. A mãe acabou morta quando visitava o vizinho e foi surpreendida pela queda de uma bomba. O pai morreu logo em seguida, de desgosto.
Com a chegada do exército americano, Iván viu a liberdade novamente. Encantado por uma jovem que fazia trabalhos forçados na fazenda vizinha, ele fez a proposta. "Você está na mesma situação que eu, sem família, sem nada. Aceita casar comigo? Ela disse que sim."
Os dois informalmente recém-casados encontraram ao redor um país em desordem e se viram ameaçados mais uma vez. Os russos que chegavam começaram a pegar à força gente para trabalhar para eles. "Procuramos um campo de abrigo americano o mais rápido possível." Os dois ficaram no campo de refugiados, com a ajuda da Cruz Vermelha, até 1948. Falaram-lhes que o Brasil seria um bom lugar para recomeçar a vida. Aceitaram a sugestão e vieram. Hoje o casal tem duas filhas, cinco netos e três bisnetos.
Em 2010, Iván foi surpreendido pela proposta de fazer parte de um documentário. Voltou para a Ucrânia para rever a irmã, que tinha visto pela última vez em 1942, e foi o tempo todo filmado. "Depois de 68 anos revi minha irmã mais nova. Ela me esperava na frente de casa com um pão, como manda a tradição." Lá, soube que a irmã mais velha tinha voltado para a casa do pai, reconstruído tudo e ali morou até morrer.
Sobreviventes do Holocausto
VIDA E CIDADANIA | 4:16
Moisés conta como foi sair à força de casa e depois trabalhar em campos. Foi torturado, tanto que ficou com problemas de visão. O que ele não esquece eram os gritos fortes dados pelos soldados. Ele trabalhou em várias fábricas e narra o cenário vivido.