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Enedina (à esquerda) com as professoras do Grupo  Barão de Antonina, em Rio Negro (PR), na década de 1930, quando lecionava | Acervo/ Maria da Glória Foohs
Enedina (à esquerda) com as professoras do Grupo Barão de Antonina, em Rio Negro (PR), na década de 1930, quando lecionava| Foto: Acervo/ Maria da Glória Foohs

Cronologia

Confira dados sobre Enedina Alves Marques, coletados nas pesquisas dos historiadores Sandro Luís Fernandes e Jorge Luiz Santana

• Anos 10 - Os pais de Enedina, Paulo Marques e Virgília Alves Marques, chegam a Curitiba, de procedência desconhecida. Fontes indicam que a família teria se radicado no Ahú ou no Portão, esse o bairro onde dona Duca, como Virgília era chamada, ganhava a vida como lavadeira.

• 1913 - Enedina nasce em Curitiba, no dia 13 de janeiro. Centenário de nascimento, ano passado, não foi lembrado na cidade.

• Anos 1920 - Dona Duca trabalha para a família do delegado e major Domingos Nascimento Sobrinho, onde passa hoje a Rua Vital Brasil, esquina com a Rápida, bairro Portão. Casa da família – um exemplar de madeira, com varandas e lambrequins – foi transferida para o Juvevê e abriga a sede regional do Iphan.

• 1925-1926 - Enedina é alfabetizada na Escola Particular da Professora Luiza. No ano seguinte, ingressa na Escola Normal, onde permanece até 1931.

• 1932-1935 - Formada no curso Normal, junto com Isabel, a Bebeca, filha de Domingos Nascimento, Enedina passa a trabalhar como professora no interior do estado. Atua em cidades como Rio Negro, São Mateus do Sul, Cerro Azul, Campo Largo.

• 1935-1937 - De volta a cidade para cursar o Madureza no Novo Ateneu – intermediário que passa a ser exigido para continuar dando aulas – vai viver com a família do construtor Mathias e Iracema Caron, no Juvevê, e dá aulas no próprio bairro, ganhando classe na Escola de Linha de Tiro. O amigo Jota Caron, parente do casal, é quem garante a permanência da professora na residência. Depois dos Nascimento, os Caron se tornam os novos benfeitores de Enedina. Mesmo sem ser formalmente empregada da casa, pagava os préstimos com serviços domésticos.

Ainda em 1935, aluga casa na frente do Colégio Nossa Senhora Menina, no Juvevê, e monta classes seriadas de alfabetização.

• 1938 - Faz curso complementar em pré-Engenharia no Ginásio Paranaense, hoje Estadual do Paraná, no período noturno. Permanece na casa dos Caron.

• 1940 - Ingresso na Faculdade de Engenharia da Universidade do Paraná. De acordo com Jorge Santana, o valor da mensalidade equivaleria hoje a um salário mínimo.

• 1945 - Enedina Alves Marques se gradua em Engenharia Civil na hoje Universidade Federal do Paraná, tornando-se a primeira mulher engenheira e negra do Sul do Brasil. Tinha 32 anos. A formatura se deu no Palácio Avenida, tendo como paraninfo o professor João Moreira Garcez.

Antes dela, dois negros se formaram em Engenharia na instituição – Otávio Alencar (1918) e Nelson José da Rocha (1938). Depois dela, formou-se o negro Adelino Alves da Silva (1947).

• 1946 - Exonerada da Escola da Linha de Tiro, no Juvevê, torna-se auxiliar de engenharia na Secretaria de Estado de Viação e Obras Públicas.

• 1947 - É descoberta pelo governador Moysés Lupion, que a desloca para o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica. Trabalha no Plano Hidrelétrico do estado e atua no aproveitamento das águas dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu. Para muitos, foi seu maior feito como engenheira.

• 1961 - O sociólogo Octávio Ianni entrevista Enedina Marques para a pesquisa Metamorfoses do escravo, financiada pela Unesco.

• 1962 - Aposenta-se no governo do estado e recebe o reconhecimento do governador Ney Braga, que por decreto admite os feitos da engenheira e lhe garante proventos à altura dos melhores escalões.

• 1981 - Enedina Alves Marques é encontrada morta no Edifício Lido, no Centro de Curitiba, vítima de ataque cardíaco.

• 1988 - Torna-se nome de rua na Vila Oficinas, no bairro Cajuru.

• 2006 - Fundação do Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques, em Maringá.

• 2014 - O historiador Jorge Luiz Santana defende, na Universidade Federal do Paraná, monografia sobre a vida e obra de Enedina Marques, sob orientação da pesquisadora Roseli Boschilia.

Fonte: Jorge Santana, Sandro Fernandes, Ezuel Hostins.

Enedianas

O benfeitor

É de consenso entre os pesquisadores da vida de Enedina Alves Marques que seu maior benfeitor foi o major e delegado Domingos Nascimento Sobrinho. De acordo com relatos da neta de Domingos, a historiadora e professora aposentada Ezuel Hostins, 66 anos, afilhada de Enedina, o avô fazia diligências pelo interior e trazia gente para cumprir medidas na capital. Como morava no bairro do Portão, não raro os apreendidos faziam pernoite no casarão da família. Tempos depois, esses homens voltavam, pedindo ajuda a Nascimento. Esse vaivém deu ao major a fama de benfeitores de negros – uma espécie de Oscar Schindler da comunidade. O feito mais concreto foi ter mantido Enedina nos estudos, "pagando-lhe o bonde", para que estudasse com Isabel, a única filha dentre os seis filhos de Domingos Nascimento. Quando morreu, em 1958, sua beneficiada era engenheira formada.

Bebeca

Apesar da grande amizade que uniu a negra Enedina e a branca Isabel, filha de Domingos Nascimento – ambas cursaram juntas o Instituto de Educação e se formaram no curso Normal -, a amizade foi abalada. Familiares dizem desconhecer o motivo do rompimento. Mesmo assim, a amizade com os demais continuou. "Ela era engraçada. Vaidosa. Se tinha pedrinha no chão, tirava os sapatos e ia descalço para não estragá-los", conta o comerciante Francisco Brasil Nascimento, 54 anos, um dos netos de Domingos.

Nos EUA

Uma vez estabelecida no setor de engenharia do governo do estado, Enedina se dedicou a viajar, o que não era tão fácil nos anos 1950 e 1960. Tida como "pão duro", trazia chaveirinhos de lembrança. Antiamericana, demorou a conhecer os Estados Unidos. Quando o fez, conta a afilhada Ezuel Hostins, perdeu o passaporte e teve problemas para embarcar. Foi tão bem tratada pelas autoridades dos EUA que mudou sua opinião sobre o país.

Na escola

O pesquisador Gehad Ismail Hajar investiga o movimento de alfabetização de negros no estado do Paraná. Interessa-lhe, em especial, o negro andarilho Joaquim da Costa Turíbio, criador nos anos 1910 do Clube Modelo – uma escola para negros – e os professores José Cleto da Silva e Nivaldo Braga, que na mesma época se dedicaram a essa comunidade. Hajar acredita que esses pioneiros garantiriam, indiretamente, a chegada de Enedina Marques à escola. Ela teria sido alfabetizada aos 12 anos, em 1925, por uma professora particular, possivelmente a educadora Luiza Dorfmund, descendente da mítica Emília Erichsen, educadora pioneira nos Campos Gerais.

  • A casa grande onde viveu Dininha - Uma das melhores histórias de Enedina Alves Marques diz respeito a seu benfeitor – o major da polícia e delegado Domingos Nascimento Sobrinho (não confundir com o homônimo, compositor do Hino do Paraná, de quem era parente). Domingos vivia no bairro Portão, na casa que hoje abriga o Instituto Histórico, Iphan, desmontada e transferida para o Juvevê. A mãe de Enedina, nhá Tuca, lavava roupas para a família Nascimento. A aproximação foi natural. Domingos tinha uma filha da mesma idade, Isabel, e
  • Retrato de Domingos Nascimento Sobrinho, major e delegado de polícia, e sua mulher. Na adolescência, teve Enedina como agregada de sua família, acompanhando a menina da casa, Isabel, às aulas no Instituto de Educação, onde também se formou
  • Formatura de Enedina Alves Marques, em 1945, no curso de Engenharia Civil da então Universidade do Paraná. Colação de grau foi no Palácio Avenida. Ela tinha 32 anos
  • Enedina Marques no casamento da afilhada Ezuel Hostins, com os amigos da família Nascimento
  • Enedina em festa de formatura na família Nascimento
  • A historiadora Ezuel Marques na casa de seu avô, Domingos Nascimento, hoje sede do Iphan, no Juvevê. Casarão abrigou os anos de juventude de Enedina Alves Marques
  • O historiador Sandro Luís Fernandes e a foto de Enedina. Junto de Paulo Munhoz, ele produz o documentário

O nome da engenheira Enedina Alves Marques (1913-1981) andava tão apagado que não causaria espanto se alguém o tomasse por senha de uma sociedade secreta. A lista seleta dos que lhe prestavam culto se resumia aos decanos do Instituto de Engenharia do Paraná, o IEP, às senhoras do Clube de Soroptimistas – para citar duas sociedades das quais fez parte –, e chegava a uns poucos amigos e afilhados.

Até que súbito se tornou uma popstar. Virou bandeira flamejante no movimento negro e objeto de estudos de gênero, mesmo que nos seus 68 anos de vida não tenha demonstrado simpatia por nenhuma das duas causas. Há 15 dias, um post sobre a engenheira gerou 2 mil compartilhamentos instantâneos no Facebook. Em paralelo, uma campanha reivindica que o Edifício Teixeira Soares, ex-RFFSA, na Rua João Negrão, futuro Câmpus Rebouças da UFPR, passe a se chamar Enedina Alves Marques.

Se o apelo popular comover de fato a UFPR, Enedina vai abater dois pesos pesados de uma vez – o engenheiro André Rebouças, que entre outras obras assina a Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá; e João Teixeira Soares, misto de engenheiro e herói que trabalhou para concluir a mesma ferrovia, no final do século 19. Qualquer que seja o resultado da peleja, Enedina já saiu vitoriosa: na fachada do câmpus ou não, é improvável que essa mulher negra e pobre, feita a primeira engenheira do Sul do Brasil, volte para a zona do esquecimento.

Tiros ao alto

A reviravolta em torno de Enedina começou bem longe da internet. De um lado, o historiador Sandro Luís Fernandes e o cineasta Paulo Munhoz deram início à pesquisa para o documentário A engenheira, no momento estacionado por falta de patrocínio. De outro, o historiador baiano Jorge Luiz Santana, radicado na capital, deu cabo à pesquisa de graduação Rompendo barreiras: Enedina, uma mulher singular.

Sandro e Jorge trocaram figurinhas e em tempo recorde levantaram um sem número de informações sobre a personagem. "Sou eternamente grato a essa mulher", repete Jorge. Cotista do curso de História da UFPR, descobriu a existência da engenheira numa conversa de corredor com o professor Magnus Pereira. Não deixa de ser irônico – diz-se por aí que foi preciso um negro baiano para enxergar o ineditismo de uma negra curitibana, cujos méritos são insuspeitos até por quem sente urticárias a debates raciais. "Se a ideia é homenagear um negro, que seja a Enedina", protesta o biógrafo.

Na informalidade, Jorge Santana é uma daquelas figuras a um passo de organizar um motim. Quando se trata do pesquisador, veste a mortalha do rigor. Seu trabalho acadêmico oferece um inventário exaustivo sobre as famílias, escolas e empregos por onde Enedina andou, nunca carregada de liteira, como se sabe.

Não foi pequeno fardo carregado para que conseguisse se formar na Escola de Engenharia. Há indícios de que tenha sofrido racismo no ambiente acadêmico. Não lhe faltam, porém, reconhecimentos em vida. No ano de 1961, o sociólogo Octavio Ianni veio a Curitiba, entrevistá-la para a pesquisa Metamorfoses do escravo. Outro instante mágico, na mesma época, foi a promoção recebida do governador Ney Braga, alçando-a ao piso salarial de um juiz. O benefício lhe garantiu uma aposentadoria respeitável, que soube nutrir com belas perucas, casacos de peles e viagens.

Motivo da bênção? "Os esforços de Enedina para a implantação da Usina Capivari-Cachoeira libertaram o Paraná da exploração energética estrangeira", responde Jorge. Essa passagem é também das mais deliciosas, digna de uma cinebiografia. Pequena e magra como um passarinho, a vaidosa Enedina ia à barragem vestida de macacão surrado, com uma arma na cintura, mandando tiros ao alto para se fazer respeitar pelos operários, que resistiam obedecer uma mulher, que dirá negra. Custou, mas ela se fez ouvir.

Perfil - Morte solitária gerou comoção e reação na sociedade curitibana

Em agosto de 1981, a engenheira Enedina Alves Marques, então com 68 anos, foi capa dos jornais sanguinolentos de Curitiba. Um deles, a estampou de camisola levantada, deitada à cama, como se fosse vítima de um assassinato passional. Não era nada disso – tinha sofrido um ataque cardíaco.

Solteira e sem filhos, não havia ninguém para socorrê-la nos quartos amplos do Edifício Lido, na Rua Ébano Pereira, Centro de Curitiba, onde morava depois de viver um período no Edifício Tijucas. Os mais próximos pensavam que ela estava viajando – o que fazia com frequência, sem avisar. A desconfiança veio quando não compareceu à festa de aniversário de uma afilhada.

O desrespeito da mídia marrom teve um efeito instantâneo – em especial sobre os associados do Instituto de Engenharia do Paraná. Notas de repúdio foram publicadas na imprensa, lembrando os feitos de Enedina e, sobretudo, sua superação. Filha de uma lavadeira e de um pai ausente, cursou escola Normal no Instituto de Educação; lecionou em várias cidades, como Rio Negro; fez o Madureza e pagara a Universidade do Paraná – então obrigando taxas para os alunos –, com seus préstimos de doméstica. Tinha ao seu lado, nas carteiras, os bem nascidos do estado.

Formou-se em 1945 e fez bela carreira no governo. Além da usina Capivari-Cachoeira, que leva sua marca, tem no currículo a construção de umas tantas escolas, como o Colégio Estadual do Paraná, e a CEU – Casa do Estudante Universitário.

Segundo consta, seus pares demoraram a engoli-la. Tampouco Enedina fazia o tipo dócil. Enérgica e rigorosa, impunha-se e enfrentava – do professor que a reprovou de forma arbitrária na faculdade aos amigos que não entendiam sua determinação em ser engenheira. Devia se conformar em ser a professorinha, diziam. Até hoje sua escolha é um mistério.

O mesmo se diga de seu comportamento independente. Podia estar entre as mais elegantes do Clube das Soroptimistas e ao mesmo tempo apitar os jogos de futebol dos amigos engenheiros. Não se furtava de beber socialmente com eles, no bar, para inveja das mulheres de seu tempo. E de soltar impropérios que a fariam ser taxada de preconceituosa. "Era livre", resumem os seus.

História

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