Virou rotina chegar ao sexto andar das “torres” da prefeitura de Curitiba, na Avenida João Gualberto, e achar um grupo de professores em pé, em meio a uma reunião relâmpago. Há barulho. No grupo está sempre a educadora Letícia Mara de Meira, uma das diretoras do setor, partilhando as últimas diretrizes. “Em educação, é assim que funciona”, resume. Não raro, algumas participantes vestem uma camiseta na qual se lê “Equidade” – nome do projeto que beneficia 26 mil crianças e motivo da conversa.
No dicionário, “equidade” remete à arte de bem julgar, a avaliar com justiça e a se comportar com lisura. Até pouco tempo, a expressão era usual só no vocabulário do Direito, no movimento social, nas políticas reparadoras; ou na Bíblia. Seu desembarque tardio nos círculos educacionais tem sido recebido como a invenção da caravela. Significa que não basta promover a igualdade, é preciso criar condições para que todos a alcancem, o que exige estratégias de guerra. “Quando o estado não admite a desigualdade, ajuda a produzir resultados desiguais. Medida igualitária não é o suficiente porque não diminui a desigualdade”, reforça Letícia.
“Eu já sabia”
As reações à proposta são dúbias – para alguns, era de “equidade” que sempre falavam quando afirmavam que o ensino não podia acontecer da mesma forma para estudantes em condição de desigualdade extrema. Para outros, o termo leva a puxar o freio. Praticar essa virtude na escola seria uma questão de caráter do professor. Para além do foro íntimo, contudo, a equidade só se realiza com um projeto coletivo. Executá-lo mexe de alto abaixo na cultura escolar.
O tal projeto agora existe, deixa o ensino municipal de canelas para o ar, e não foi feito nem a duas nem a quatro mãos. Começou a ser gerado há dois anos, quando diretores e professores de escolas deixaram de esconder seu descontentamento com a “supremacia do Ideb”, o Índice de Desenvolvimento da Escola Básica. Questionavam a serventia da divisão das escolas entre as de maiores e as de menores notas na avaliação, e a crescente ansiedade de figurar no topo do ranking.
Um dos sinais de que tinham razão veio com um estudo da própria Secretaria Municipal de Educação, mostrando a) que havia progresso entre as escolas de notas baixas; b) que esse progresso se deu em situações desfavoráveis, logo não era desprezível; c) que passava da hora de entender como escolas em áreas pobres, carentes de infraestrutura e frequentadas por filhos de adultos pouco escolarizados avançavam até três décimos por período, mesmo com 60% de alunos integrados ao Bolsa Família.
Numa etapa “pré-histórica” do projeto Equidade, técnicos se ocuparam da última questão. Surpreenderam-se com o que encontraram em escolas pouco visíveis no Ideb. Tinham algo a ensinar. A garantia de algumas condições, como baixa rotatividade de professores, gestão e acompanhamento individual de alunos alteravam, para melhor, o expediente desses locais. Mais. As que ofereciam Educação de Jovens e Adultos, à noite, se destacavam: quem sentava na carteira era um pai de aluno, que tendia a se tornar mais sensível à condição do filho. A questão é que muitas dessas iniciativas dependiam do heroísmo de um ou de outro profissional. A proposta agora é transformar essas experiências isoladas em política de governo.
O “núcleo duro” do Equidade é formado por 62 educadores da secretaria e dos núcleos de educação, 14 em dedicação exclusiva ao projeto. Uma centena de pedagogos e licenciados foi convocada. Esses profissionais se viram divididos em 47 escolas da rede municipal, 25% do total de instituições, escolhidas a partir de critérios técnicos. Cada uma recebeu uma média, a média cluster, a partir da qual se fez a nota de corte.
Cálculo
A média cluster é calculada com base em um extenso banco de dados – em que são cruzadas informações do Ideb, do Bolsa Família, IBGE, Ipardes... Esse trabalho levou à lista dos espaços de ensino mais vulneráveis, pelo que se entende aqueles que, pelo princípio da equidade, precisam de “espinafre” para estarem de fato em igualdade de condições com as demais escolas. Analfabetismo ou alfabetismo funcional no entorno da escola pesa? Pesa. Mais do que a nota do Ideb – entre as 47, algumas têm média 6 –, pois incide sobre o valor dado à educação entre os que convivem com as crianças.
Cada uma das escolas selecionadas ganhou dois profissionais de educação a mais, por turno – em especial para dar apoio pedagógico e interagir com a comunidade. A rotina mudou. O senso comum sobre a realidade dessa escola ou daquela, não raro usado como pretexto para justificar o baixo desempenho, agora é confrontado com um extenso estudo, que nem sempre legitima o que se pensava.
Os planos de trabalho devem ser traçados, agora, a partir da análise desse material. O efeito? Potencializa o professor como um dos narradores e intérpretes dos locais onde atua. Em vez de listar as escolas que estão no topo do ranking e as que amargam a base, prática comum desde que o Ideb começou, em 2005, educadores passaram a uma tarefa mais difícil: a de perguntar aos dados além de simplistas contas de mais e menos.
Não é a única quebra de rotina. Uma causa rebuliços em especial: reunir os pais num salão, aos sábados, para explicar o sentido da palavra “equidade”. Como parte da estratégia, são convidados a integrar o projeto e a se comprometer com ele. Os malabarismos dos professores são motivo de conversas no cafezinho. A Equidade pede criatividade.