Viaturas da Polícia Civil do Paraná que deveriam ser destinadas à investigação de homicídios e outros crimes estão sendo usadas por delegados, escrivães e investigadores para viajar em férias, levar os filhos à escola, ir às compras, transportar comida para cachorros, ir a prostíbulos. Durante cinco meses, uma equipe da Gazeta do Povo analisou documentos secretos, conferiu gastos, fez investigações de campo e concluiu que grande parte dos 2.197 carros oficiais da corporação foram desviados para atender a interesses pessoais. Enquanto isso, a polícia consumiu R$ 41,5 milhões com aluguel de veículos nos últimos oito anos, média anual de R$ 5 milhões.
Flagrantes
A Polícia Civil gastou no ano passado R$ 2,7 milhões na locação de 129 carros, o equivalente a um quarto das viaturas usadas para fins particulares, conforme documentos e fontes de informação. Estes carros são chamados de "mordomóveis" no meio policial. Mesmo no auge das locações, em 2004, a um custo de R$ 9,9 milhões por 434 veículos, a quantidade alugada ainda ficou abaixo do total de "mordomóveis". Ou seja, um gasto desnecessário se a frota disponível fosse bem utilizada. Prática antiga, o mau exemplo do uso de viatura em proveito próprio parte da cúpula da polícia e chega ao último escalão. Estes veículos deveriam ser para uso restrito em serviço, conforme o Decreto n.º 3269, de 2008.
O chefe da Corregedoria da Polícia Civil, delegado Paulo Ernesto Araújo Cunha, dispõe em tempo integral de um Renault Fluence, com o qual sai a passeio e vai às compras. A secretária executiva da corporação, delegada Leonídia Hecke, leva criança à escola numa Ecosport. O chefe da Divisão de Infraestrutura, delegado Benedito Gonçalves Neto, usa um Renault Logan para ir ao mercado. O chefe da Divisão de Investigações Criminais, delegado Hitiro Hashitani, faz pior. Dispõe de um Logan para assuntos particulares e ainda usa o investigador Carlos Roberto Faria como motorista para levar criança à escola numa Ecosport.
O flagrante mais grave envolve o chefe da Divisão de Crimes contra o Patrimônio, o delegado Luiz Carlos de Oliveira. No último dia 8, por exemplo, ele saiu de casa às 17h40 no Logan AYB-9611 e em 15 minutos entrava pelo portão de um prostíbulo na Avenida Visconde de Guarapuava, no Centro de Curitiba. Chegou às 17h55 e saiu às 20h50. Ficou por três horas no lugar, tempo em que o carro permaneceu estacionado nos fundos do bordel. Dias depois, a reportagem flagrou outras duas viaturas descaracterizadas entrando no lugar. Todos esses veículos pertencem à Secretaria de Estado da Segurança Pública e deveriam ser usados exclusivamente em serviço pela Polícia Civil.
Bom pra cachorro
Outro flagrante envolve a escrivã Marlene Heckert, lotada no Instituto de Identificação do Paraná. Todos os dias, entre 15 horas e 15h30, ela recolhe em baldes de plástico as sobras de comida num restaurante na Rua José Loureiro e no refeitório da Polícia Civil, no Centro de Curitiba, para levar a uma instituição que cuida de cachorros no bairro Uberaba, a 8 quilômetros. Após queixas internas no Instituto de Identificação de que ela dispunha de um carro oficial para fazer serviços particulares, Marlene trocou o Renault Clio por um Gol ano 2010, com a placa reservada AVC-8814.
Esse veículo, alugado pela Polícia Civil para servir de viatura, também é usado pela escrivã para fazer entrega de rações e casinhas de cachorro aos clientes de um pet shop na Avenida Salgado Filho, também no Uberaba. Antes, ela distribui em algumas casas as marmitas com refeições recolhidas no refeitório da Polícia Civil. O caso de Marlene está longe de ser uma exceção.
Os carros oficiais em desvio de função chegam à metade da frota, considerando também aqueles destinados a outros órgãos públicos que nada tem a ver com o trabalho policial. Assim, resta metade para o verdadeiro fim a que se destina. Isso explica porque a resolução de crimes anda mal: porque a investigação anda em viaturas sucateadas. A cada renovação da frota da polícia, os carros novos são distribuídos entre os delegados alinhados com o comando geral. As viaturas por eles dispensadas vão para os servidores de segundo escalão e as desses chegam enfim aos investigadores, já com cinco ou seis anos de uso.
Salvo raras exceções, os 384 delegados do estado têm uma viatura para uso particular. Escrivães e investigadores também desfrutam dessa regalia, sempre com combustível e manutenção por conta do Estado. Em Curitiba, viaturas que deveriam estar no trabalho de investigação passam o dia inteiro estacionadas em locais proibido nas ruas próximas ao Departamento da Polícia Civil. Elas fazem falta em dois setores cruciais para o cidadão: o Instituto de Identificação e a Delegacia de Homicídios de Curitiba.
O Instituto de Identificação é um caso particular. Setor mais rentável da Polícia Civil, arrecadou no ano passado R$ 6 milhões com emissão de carteiras de identidade, certidões e atestados. Contudo, seus 22 postos no interior não dispõem de viatura para os papiloscopistas, função que não se restringe à confecção de identidade. Todo local de crime contra a vida ou ao patrimônio pode conter impressões digitais. Para coletar o material que poderá identificar o autor do crime, os papiloscopistas têm de pegar carona. As 16 viaturas do órgão estão lotadas em Curitiba. Uma delas, a Ecosport BCQ-2769, fica à disposição do diretor, para uso pessoal.
A falta de viaturas afeta ainda a Delegacia de Homicídios, responsável por investigar os crimes contra a vida ocorridos em Curitiba, São seis delegados e cinco equipes de investigadores para 60 novos inquéritos por mês. Como se dividem por turnos e não por região, muitas vezes são obrigados a investigar casos em cantos opostos da cidade, desperdiçando tempo e informações que podem ser fundamentais na elucidação dos crimes. Mas não é só isso. A Homicídios dispõe de 21 viaturas, mas as melhores estão com a chefia e passam o dia paradas à disposição dos delegados e outros funcionários. Sobram as mais velhas para as investigações.